Houve um tempo em que corrigir um teste de avaliação era de facto corrigir um teste. Explico: Qualquer teste apresentava, invariavelmente, respostas acertadas, outras incompletas, algumas completamente erradas ou parcialmente incorrectas. O professor assinalava, escrevia um ou outro comentário no próprio teste, ia atribuindo cotações em cada resposta e no final a soma correspondia a uma classificação e o teste, a que se chamava “ponto”, vá-se lá saber porquê, tinha então uma menção qualitativa. Havia, claro, testes luminosos, com modelos de resposta exemplares, imaculados de erros científicos ou calinadas na ortografia e sintaxe. Eram momentos risonhos na vida de um professor.
Cada turma reunia um conjunto diversificado de alunos e havia sempre alguns mais preguiçosos, mais desatentos, menos curiosos e empenhados, mas de uma forma geral havia estudo e sobretudo chegavam a um novo ano escolar com as fragilidades do ano anterior razoavelmente resolvidas. Hoje a passagem de ano e de ciclo não é garantia de nada e muitos são os que deveriam estar a frequentar os primeiros anos do 1º ciclo a transitar para o 2º e até para o 3º ciclo.
Ao longo dos anos muita coisa mudou no Ensino em Portugal e os testes espelham de forma brutal isso mesmo quer no grau de exigência na sua formulação quer na prestação dos alunos na sua realização. O certo é que os alunos quanto menos conseguem, porque menos trabalham, menos lhes é exigido.
E tudo começou a mudar quando também se desvirtuou o papel da Educação Escolar. Com a introdução do conceito empresarial a Escola foi irremediavelmente contaminada com padrões de produtividade absolutamente contraproducentes e antagónicos ao espírito pedagógico e académico. Se existe área onde o sucesso não se mede aos palmos é na Educação até porque quando se deseja muito resultados estatísticos, os números satisfatórios facilmente aparecem, mas não passam de encenação e a falsidade nunca deveria ser o pretendido.
Ao mesmo tempo que o poder político foi apunhalando a Educação formal com objectivos quantificáveis em folhas de Exel, exigência de relatórios redundantes e justificações inconcebíveis, as famílias foram-se sentindo cada vez mais como clientes dos professores e como tal, sempre seguros e confiantes que teriam sempre o apoio institucional fossem quais fossem os seus protestos apresentados. Nas escolas a pressão para se alcançarem resultados, como se de uma fábrica de pneus se tratasse, começou a dar frutos sobretudo com a introdução do actual modelo de gestão no qual os directores são apenas executantes mornos e murchos das ordens ministeriais.
Entretanto o ME, não contente ainda com os resultados, fruto da resistência de muitos professores que não aceitam ser coniventes com a ignorância a ser maquilhada e apresentada como conhecimento adquirido, a tutela produziu dois diplomas em 2018 os decretos-lei 54 e 55 que aniquilam, na prática e de forma inequívoca, a possibilidade de uma retenção (ou reprovação, como antigamente se dizia, mas agora as palavras têm de ter nenúfares e borboletas nas sílabas para não traumatizar as crianças).
Assim, de degrau em degrau temos vindo a baixar de forma categórica e assustadora o Santo Graal da Educação: a aquisição do conhecimento em prol da evolução civilizacional. Uma evolução que tem sido apanágio da humanidade, mas que parece estar a ser invertida.
Hoje, quando um professor de História que não opte pelos testes de cruzinhas, corrige os testes dos seus alunos confronta-se não apenas com erros científicos, lacunas, confusões de datas e nomes de protagonistas, tudo dentro de um quadro aceitável. Hoje, um teste de História representa muitas vezes um momento de extrema bizarria. Entre alunos que não sabem literalmente escrever porque do ponto de vista caligráfico nem o desenho das letras foi alcançado, e os que não conseguem elaborar uma frase simples que tenha um mínimo de lógica textual e correção sintáctica, há ainda os casos, cada vez em maior número, em que se revela uma incapacidade de auto-crítica e reconhecimento do absurdo nas respostas que dão. E há muitos absurdos e incompreensíveis porque não se entende a origem do inconcebível como é, a título de exemplo o aluno que afirmou que a cidade sagrada dos muçulmanos era o “Alentejo” ou um outro que afirmou que um dos acontecimentos que antecederam a proclamação da República revelador que o fim da monarquia estava próximo terá sido “o início dos Jogos Olímpicos da era Moderna” ou ainda que o telégrafo foi um meio de transporte e que quando surgiu percorria só alguns distritos dentro de Portugal mas depois foi evoluindo para Madrid, França e Rússia. Fantástico!
Já era grave o analfabetismo onde não é suposto, o vocabulário limitado, a escassa capacidade de concentração, a paupérrima curiosidade científica e cultural, mas o que se assiste agora a somar ao diagnóstico é a incompetência de uma muito básica reflexão. E esta debilidade compromete todas as aprendizagens.
Como se inverte a situação? Não facilitando. E não facilitar é ensinar a pescar em vez de constantemente dar o peixe, é largar a mão e o colo para que os alunos caminhem com os seus pés, é não impedir que ocorram as consequências da falta de trabalho, é tratar o conhecimento com o respeito que merece, é abandonar as engenharias de maquilhagem, é encarar o processo de ensino-aprendizagem numa óptica honesta.
Em suma, é preciso que a Política Educativa recupere da insanidade em que se encontra.
Paula Timóteo