Arte Japonesa I No Museu Calouste Gulbenkian

Arte Japonesa I No Museu Calouste Gulbenkian

O museu Calouste Gulbenkian apresenta até Outubro de 2023 uma notável exposição de arte japonesa. Estão patentes uma série de estampas japonesas produzidas entre o século XVII e o século XIX.

O “Mundo flutuante: estampas japonesas ukiyo-e” destaca o conceito de ukiyo, que significa «mundo flutuante», e que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. É aqui traçado o perfil de Edo, actual Tóquio, através de duas temáticas ilustrativas da cultura popular da cidade de então: a beleza feminina, personificada na figura da cortesã, e a contemplação do mundo natural.

Essa cultura também é definida através da representação do traçado urbano da cidade, dos seus lugares icónicos – incluindo o histórico bairro de Yoshiwara – das ruas e da paisagem em redor. As doze gravuras uki-e (impressões em perspetiva), de Utagawa Toyoharu (1735-1814) apresentam visões reais de Edo e testemunham o incessante fervilhar da cidade. A adoção da perspetiva linear foi relevante para o estabelecimento do género paisagístico ukiyo-e, inaugurado por Katsushika Hokusai (1760-1849) com a famosa série das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji (Fugaku sanjūrokkei), de que a coleção contém dois exemplares.

A primeira versão do projeto editorial de Utagawa Hiroshige (1797-1858), As Cinquenta e Três Estações Postais do Tōkaidō (Tōkaidō gojûsantsugi), faz parte desse fenómeno, e obteve tamanho sucesso que foi impressa em duas edições. A coleção Gulbenkian conserva uma segunda versão realizada em colaboração com Utagawa Kuniyoshi (1797-1861) e Utagawa Kunisada (1786-1865) e que, embora represente o Tōkaidō – a estrada que ligava Edo a Quioto – associa a cada uma das diferentes estações deste caminho as mais relevantes lendas, histórias e poemas japoneses.

É dada ainda a conhecer a importância dos surimono, edições exclusivas e limitadas de xilogravuras, acessíveis apenas a alguns cidadãos da sociedade japonesa da altura. A colecção do Museu possui um grupo expressivo destas obras, sobretudo da autoria de Totoya Hokkei (1780-1850). 

Destaque para as 12 gravuras de Utagawa Toyoharu, impressões em perspectiva que mostram o fervilhar da cidade de Edo (hoje Tóquio). A exposição também integra uma breve história dos surimono, xilogravuras de edição limitada, apenas ao alcance de certos elementos da sociedade japonesa da época.

Com curadoria de Jorge Rodrigues, do Museu Calouste Gulbenkian, de Francesca Neglia, da Universidade de Roma, e de Hannah Sigur, da Universidade Nova de Lisboa, a exposição exibe também algumas das estampas danificadas nas cheias de 1967, incluindo o moroso trabalho da equipa de conservação e restauro para recuperar as obras em causa.

relação dos portugueses com o Japão é singular e corresponde, apesar das vicissitudes, a um percurso que o tempo fortaleceu. Os primeiros portugueses chegaram ao país do Sol Nascente entre 1542 e 1543. Segundo a tradição, teria sido um junco chinês com três portugueses, apanhado por uma tempestade, que teria sido desviado para a ilha de Tanegashima. E a partir de então iniciou-se uma relação com repercussões culturais únicas. Não foi, no entanto, fácil o intercâmbio histórico e religioso, muitas vezes com repercussões trágicas. A evolução permitiu, porém, o aprofundamento dos fatores de entendimento.

A exposição “Mundo Flutuante: estampas japonesas “ukiyo-e””, que se encontra no Museu Gulbenkian, é uma agradável surpresa. Centra-se no conceito de ukiyo, que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. Sobre esse tema fascinante, Calouste Gulbenkian reuniu um notável conjunto de arte produzida entre os séculos XVII e XIX, maioritariamente estampas do período Edo (1603-1868) e um conjunto de objetos de laca., além de livros, incluindo as preciosas “surimono” que permitem usufruirmos das mais valiosas virtualidades da cultura nipónica. É uma faceta menos conhecida da personalidade de Gulbenkian que permite compreender o carácter multifacetado do extraordinário colecionador. Em paralelo, e num domínio diferente, o Centro de Arte Moderna celebra os seus quarenta anos de vida com uma evocação da contemporaneidade japonesa, permitindo-nos complementar a lembrança histórica e a vitalidade atual. Aproveitando a obra de renovação do CAM pelo arquiteto japonês Kengo Kuma esta aproximação cultural revela-se preciosa. Na tradição antiga e na modernidade, a natureza é, para os japoneses uma força vital. E sempre me tocou o grande interesse dos japoneses por Portugal, sabendo eles muito mais sobre nós do que nós sabemos sobre o Japão, apesar do contacto e da partilha de experiências.

Agora, temos o privilégio de dispor de diferentes visões da natureza e da paisagem, a projeção da perspetiva linear ocidental do Renascimento para o Oriente, a beleza e a sofisticação das cortesãs (“bijin”), a importância das narrativas literárias tradicionais, mas ainda os efeitos das inundações de 1967 sobre as estampas da coleção e a mestria dos restauros realizados.

Cores vivas e composições assimétricas, linhas claras e sinuosas, representações de momentos simples do cotidiano, pequenos intervalos de prazer, a natureza ou mesmo retratos de celebridades: esses são alguns elementos das gravuras ukiyo-e arte japonesa no período Edo.

Entre 1600 e 1860, a cultura popular floresceu no Japão, e com ela, a arte do ukiyo-e – os “retratos do mundo flutuante”.

Ukiyo-e

Ukiyo-e, ukiyo-ye ou ukiyo-ê, “retratos do mundo flutuante”, em sentido literal), vulgarmente também conhecido como estampa japonesa, é um gênero de xilogravura e pintura que prosperou no Japão entre os séculos XVII e XIX. Destinava-se inicialmente ao consumo pela classe mercante do período Edo (1603 – 1867). Entre as mais populares temáticas abordadas, estão a beleza feminina; o teatro kabuki; os lutadores de sumô; cenas históricas e lendas populares; cenas de viagem e paisagens; fauna e flora; e sensualidade.

Artistas ukiyo-e

Alguns dos artistas devotaram-se à pintura, mas a maioria era composta por gravuristas. Tais indivíduos raramente talhavam seus próprios blocos de impressão. Em vez disso, a produção era dividida entre o artista, que criava a obra; o talhador, que gravava a arte nos blocos; o impressor, que pintava e prensava os blocos nos washis; e o publicador, que financiava, promovia e distribuía os trabalhos. Por ser uma atividade artesanal, gravuristas podiam dominar e empregar uma grande variedade de efeitos a partir de diferentes técnicas impraticáveis na produção mecanizada, como a criação de gradações de cor, por exemplo.

No começo do século XVII, a burguesia da próspera Edo (hoje Tóquio) passou a buscar entretenimento nos teatros de kabuki e com as oirans e geishas das yūkaku, zonas de meretrício. O termo ukiyo (“mundo flutuante”) descrevia o estilo de vida hedonista da era. Pintadas ou impressas, essas obras de artes visuais eram populares entre os burgueses, abastados o suficiente para adquiri-las a fim de decorar suas casas. O sucesso começou já na década de 1670, com as pinturas e gravuras monocromáticas de Hishikawa Moronobu, retratando a beleza feminina. A impressão colorida surgiu gradualmente — a princípio adicionada meticulosamente à mão e apenas em casos especiais. Por volta dos anos 1740, artistas como Okumura Masanobu usavam múltiplos blocos de madeira talhados em baixo-relevo para criar áreas coloridas. A partir de 1760, o sucesso das gravuras brocadas nishiki-e de Suzuki Harunobu levou a

produção em alto apuro de cor a tornar-se padrão, com cada item sendo concebido a partir do uso de dez ou mais blocos. O auge do período, em quantidade e qualidade, foi marcado por peças que retratavam a beleza e o teatro, criadas por mestres como Torii Kiyonaga, Kitagawa Utamaro e Tōshūsai Sharaku ao final do século XVIII. Esse ápice foi seguido, no século seguinte, por mestres em paisagens, liderado por Hokusai, cuja Grande Onda de Kanagawa é não só a obra-prima do género mas também uma das mais populares e aclamadas peças da arte japonesa; e pelo sereno criador de ambientes atmosféricos Hiroshige, conhecido por “Cinquenta e Três Estações da Tōkaidō”. Com a morte desses mestres e a modernização tecnológica e social da restauração Meiji, de 1868, a produção do ukiyo-e declinou.

A arte japonesa e as vanguardas europeias

O género foi um elemento nuclear para a formação da percepção ocidental a respeito da arte do Japão ao final do século XIX, especialmente a partir das paisagens de Hokusai e Hiroshige. Na década de 1870, o japonismo tornou-se uma proeminente tendência e foi grande influência aos primeiros impressionistas, como Edgar Degas, Édouard Manet e Claude Monet, bem como aos pós-impressionistas, tais quais van Gogh, e a artistas da art nouveau, entre eles Henri de Toulouse-Lautrec. O século XX assistiu a um renascimento da xilogravura japonesa, com a vertente shin-hanga a crescer em termos de interesse no ocidente com suas cenas tradicionais da cultura nipônica combinadas a referências ocidentais e o movimento sōsaku-hanga a pregar o individualismo de produção enquanto caminho criativo único para a expressão do eu. As culturas legatárias do ukiyo-e, desde o final do século XX, continuam em tal veia individualista e vêm sendo também concebidas a partir de técnicas importadas do mundo ocidental, como a serigrafia, a água-forte e o mezzo tinto.

Esta exposição representa também uma oportunidade para admirar o “Mundo flutuante: estampas japonesas ukiyo-e” e algumas das gravuras danificadas nas cheias de 1967 que afectaram a região de Lisboa. O lento e pormenorizado trabalho da equipa de conservação e restauro nestas obras foi pioneiro a nível nacional e é também contemplado neste evento.

Theresa Bêco de Lobo

Theresa Bêco de Lobo

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