Duas Colecções Contemporâneas
Acentua-se, entre nós, a tendência para se coleccionar pintura moderna e contemporânea.
Os que juntam colecção são, muto frequentemente, pessoas solitárias, de vidas afectivas lineares, sem filhos nem intimos. Os laços com os familiares, herdeiros, revelam-se débeis, sem força para se imporem à paixão pelas obras de arte. “Elas são minhas filhas”, exclamava com frequência Calouste Gulbenkian, referindo-se aos bens artísticos, umas das maiores colecções do século XX, de que era ávido e cioso.
A dispersão, perda de tais conjuntos, sonhos de toda uma vida, torna-se-lhes, assim, insuportável. Fazer deles núcleos de veneração pública é, na perspectiva de muitos coleccionadores, uma maneira de continuarem entre os vivos. Infelizmente na maioria das vezes tal sonho revela-se impossivel de concretizar, por falta de interesse das obras, dificuldades de ordem material ou o desapareciento inesperado.
Colecção em dois andares
O psicólogo Jorge Manuel da Silva Ferreira, que dedicou a vida a coleccionar pintura, desenhos e gravuras de artistas portugueses dos anos 60 a 2015, era um quase desconhecido. Todos os seus rendimentos eram destinados a adquirir obras de arte e livros que enchiam dois apartamentos, um t1 e um amplo t2, na zona de Cascais.
Sem filhos, apenas com vagos primos, passou mais de quarto décadas a coleccionar óleos de Carlos Figueiredo, Pedro Saraiva, Ruth Rosengarten, Rui Serra, João Salema, Inez Teixa, um excelente núcleo dos principais gravadores portuguese, algums desenhos, alguma fotografia, qualificadas esculturas primitivas Africanas e um diminuto núcleo de cerâmicas e vidros. A outra obra gráfica, cartazes e serigrafias, era densa, mas sem grande interesse. O acervo totalizava 420 obras.
12 Herdeiros
Os últimos anos do coleccionador revelaram-se dificeis. O tumor da pele tomara-o, recusando os tratamentos, acabando por morrer durante a pandemia de Covid no Hospital de Cascais.
A quase totalidade dos herdeiros, 12 primos que vivem entre Viseu e o Seixal, descobrem um famíliar que a maioria nunca conheceu.
A colecção foi invetarida e leiloada em duas casas de Lisboa, atingindo largas dezenas de milhares de euros, enquanto os apartamentos eram colocados no mercado.
Todos os sonhos de imortalidade se desfizeram, nada restou.
Colecçao Internacional
Galerista desde muito jovem, Mário Teixeira da Silva era um profundo conhecedor da arte contemporânea portuguesa e internacional. Nascido no Porto no meio de uma família Judaica, abre a Galeria Módulo, em 1975, numa casa da família na Avenida da Boavista. Foi uma lufada de ar fresco nas muito conservadoras tradições culturais da cidade invicta. O êxito leva-o a abrir, em 1979, a Galeria Módulo, em Lisboa. Rapidamente o espaço se impõe pela qualidade e diversidade dos artistas portugueses e estrangeiros.
Ao mesmo tempo inicia uma importante colecção onde a fotografia e o desenho se impõem. No incêndio da Galeria de Belém, em 1980, perde as obras emprestadas. Nas décadas seguintes fecha-se. A vida de Mário Teixeira da Silva centra-se nas suas galerias de Lisboa e Porto, nas viagens e nos apartamentos de Campolide e Tróia.
Os seus clientes diziam-no um senhor polido, distante e sabedor. Nada mais transparecia. No quotidiano comum via exposições e fazia dieta.
As relações familiares fecham-se. Os pais desaparecem, a irmã e as sobrinhas vivem no Porto. Nos últimos anos a galeria portuense é encerrada.
A sua colecçao constituifda por obras contemporâneas abre-se, por compras em leilões, a alguns grandes pintores naturalistas e modernistas, talvez um apelo de regresso as casas onde nasceu e cresceu.
Mario Teixeiar Silva aceita, em 2022, expor a sua colecção no Museu do Chiado. É uma surpresa o gesto. A mostra revela-se um êxito.
A qualidade e diversidade revelam-se em absoluto com nomes raramente expostos aos portugueses, caso de Georges Rousse, Sherry Levine, Petter Halley, Manfredo de Souzanetto, Sylvie Fkeury, Alan Charlton, Richard Misrach, Andreas Gursky, Dennis Oppenheim, Sandy Skoglung, entre tantos outros.
Num raro texto auto-biográfico, publicado no catálogo da exposição, o galerita escreve que “coleccionar é uma fonte de prazer e contribui para o enriquecimento pessoal” e “, portanto não me identifico com comportamentos como os de Catarina da Rússia (grande coleccionadora), que em dada conversa com um embaixador disse`´Não é por amor à arte. É mera voracidade. Sou uma gulosa”.
Mário Teixeira da Silva tinha o objectivo de deixar toda a sua coleccão a uma instituição. Na sequência da exposição houve contactos entre o Museu do Chiado e o coleccionador. Nada se concretizou.
A morte de Mário Teixeira da Silva, ocorrida inesperdamente, em Janeiro deste ano, aos 70 anos, leva ao encerramento imediato da Galeria Módulo, enquanto a colecção herdada pela família será provavelmente vendida.
O catálogo da exposição foi lançado em meados deste ano, uma homenagem ao coleccionador, certamente dos raros vestígios duma vida e duma colecção.
António Brás