Os contadores de histórias

Os contadores de histórias

O Natal passou e com ele algumas tradições foram cumpridas, outras vão perdendo nitidez e muitas vão ficando emolduradas nas memórias dos mais velhos, confinadas em suspiros de saudades, narradas em crónicas do passado. Hoje, a aceleração dos dias, o esvaziamento de significado nos gestos e presenças e as novas configurações familiares têm tornado a época numa etapa do ano gradualmente mais associada a crises de ansiedade e testes de resistência. 

No jantar de 24 ou no dia de 25, a televisão liga-se e passa a preencher todos os silêncios que possam surgir nas conversas que se embrulham entre garfadas de bacalhau e broa. A televisão passou a ser o ruído constante de filmes que se repetem e para onde se vai espreitando com a convicção de que talvez ao fim de alguns anos se consiga perceber a trama por completo. Os mais pequenos agarram nos aparelhos de jogos ou nos telemóveis e nem a televisão os faz levantar os olhos dos pequenos écrans.

Mas houve um tempo em que o Natal era também o momento de recordar histórias lidas ou narradas de memória pelas avós ou tios mais idosos. Eram quase sempre os mais velhos porque cada velho tinha dentro de si um livro gigante de páginas infinitas e ilustrações que se desenhavam dentro de cada ouvinte. E eram todas diferentes, todas únicas.

Os contadores de histórias…rara seria a família que não tivesse alguém com aquele dom especial de suspender a vontade das prendas e da rabanada por uma boa história que divertia e ensinava sem se perceber que o fazia.

Hoje fazem-se workshops para ensinar a contar uma história porque já não há velhos em casa para as contar e os pais esqueceram a magia do “faz-de-conta”. As histórias são contadas na escola aos mais pequenos ou, por vezes, à noite por pais cansados que se sentam na beira da cama desejando que os filhos adormeçam rapidamente. E uma história nunca deve adormecer. Não é para isso que se escrevem histórias.  

Os contos devem ser oportunidades de prazer imaginativo, de uma viagem feita a dois.

Fazem falta mais contadores de histórias. Em casa, nos horários nobres dos canais televisivos, nas rádios, nas escolas. Porque um contador de histórias é um jardineiro de almas, um plantador de universos, um polinizador de saberes.

Um contador de histórias não é apenas alguém que lê em voz alta uma história é aquele que dá cor e corpo ao que a escrita contém, capaz de construir novos mundos, explorar as emoções contidas nas histórias ou nas que são recriadas. 

Mas não são apenas as narrativas ficcionadas que precisam de ser contadas com poesia e encanto nas palavras porque o conhecimento também se expande na toada encantatória de quem explica e que consegue “prender” os átomos escutantes.

É do conhecimento geral a forma expansiva com que José Hermano Saraiva expunha a História de Portugal entrando nas nossas casas pela televisão. Considerado no meio académico e do ponto de vista científico, pouco rigoroso, ainda assim José Hermano Saraiva cumpria com um requisito fundamental: o de conquistar o público para o saber

histórico com a exuberância nos gestos, a paixão nas expressões faciais e palavras, a boa gestão das dinâmicas, do suspense, da intensidade. Mais tarde, Miguel Portas e Fernando Rosas, com estilos bem diferentes de José Hermano, revelariam as suas excelentes competências comunicacionais neste âmbito particular que é a narrativa histórica divulgada para um grande público televisivo. E a sua excelência resultava não apenas do domínio científico, mas da incorporação metabólica do que diziam. 

Vitorino Nemésio, com a sua voz única e numa perfeita gestão de silêncios e conversa de sofá, envolvia quem o ouvia, e eram muitos os que reservavam um momento de pausa para o escutar, numa viagem de memórias dele, Vitorino Nemésio, mas que enriquecia quem delas se apropriava. E era delicioso aquele momento televisivo em que embarcávamos num saboroso galope cultural. 

Por isso um contador de histórias é ele próprio por vezes a história contada cheia de vidas que com ele se cruzaram, acontecimentos, leituras, saberes. E em todas as áreas há excelentes exemplos de geniais comunicadores, narradores de dimensões sublimes.

Os menos jovens lembrar-se-ão certamente dos concertos para jovens comentados pelo maestro Leornard Bernstein. Numa linguagem acessível a série de programas dedicados à música erudita pretendia descodificar as narrativas musicais, as construções melódicas que são a(s) voz(es) do que é exposto e contado em forma de som. Em Portugal, José Atalaia fazia os seus concertos comentados onde as histórias pessoais dos compositores se entrelaçavam com as obras, muitas delas tocadas ao piano por um Burmester tímido e adolescente.

Actualmente nas televisões não se contam histórias. Nas casas não se contam histórias, a não ser para adormecer fazendo delas meros soporíferos. Nas escolas a difícil gestão das exigências que a escola/empresa coloca, relega as histórias, literárias, musicais ou da ciência para planos inexistentes. Nas estações de rádio ouve-se rir muito, há pouca música e não se ouvem histórias. E nem mesmo em momentos especiais de aconchego rodeados de açúcar no ambiente e nas palavras se ouvem histórias e se partilham livros.

E esta amputação emocional causa estragos que só a longo prazo se tornam mais evidentes. Porque tão importante quanto a compreensão do que se ouve ou lê que, num patamar básico se cumpre com a descodificção de códigos linguísticos, é o entendimento submersivo dos acontecimentos, como se não ficássemos apenas a olhar o mar e nos lançássemos a ele molhando os pés, o corpo e o pensamento. O envolvimento emocional e orgânico com o texto, com as personagens, com os eventos. Mergulhar por completo no texto. para que dessa apropriação resulte uma leitura mais aprazível e arrebatadora por parte de quem ouve é essencial para um crescimento harmonioso e completo de cada indivíduo que cresce desde que nasce até ao momento em que morre.

Por isso, a melhor dádiva em cada Natal e em cada oportunidade na espuma dos dias, será a partilha de uma boa história.

Que 2024 seja um ano em que não percamos memória para a poder partilhar, que os livros regressem às mãos dos contadores de histórias e o conhecimento significativo e edificador volte a ser prioridade e a marcar presença nas televisões deste país tão esquecido de si mesmo. 

                                                                                                          Paula Timóteo

Paula Timóteo

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