120 anos de Agostinho da Silva
“O difícil na vida é saber fazer perguntas”
Professor e filósofo, poeta e profeta, investigador e orador, George Agostinho Baptista da Silva tornou-se um fenómeno ímpar da comunicação entre nós. Foi uma das personalidades mais marcantes do século XX português. Para alguns ele é com Fernando Pessoa, que conheceu em 1935 no Café Martinho, o grande vulto do pensamento lusíada.
Nos contactos com o grande público, Agostinho da Silva utilizava uma linguagem muito própria e pessoal, percorrida de humor, de afectuosidade, de alegorias, de surpresas.
As pessoas que o reconheciam na rua e lhe dirigiam a palavra, olhava-as com profunda simpatia, comentando: “O difícil na vida é saber fazer perguntas. Dar respostas todos dão, até porque as nossas escolas são formadoras de respostas. O racional só serve para chegar à fronteira do irracional, para nada nada”.
Recebia diariamente em sua casa inúmeros visitantes, principalmente jovens, que vinham atraídos pela força da sua palavra.
“Eu transmito luz aos outros, tento apenas desocultar a luz que há nos outros”, dizia. “O bom professor é o que aprende com os alunos, que inventa com os alunos. Quando a gente inventa ninguém pode ir contra”.
Um reduto na cidade
No seu apartamento, terceiro andar de um prédio no Príncipe Real, desenhado por Leitão de Barros, com uma excelente vista sobre o Tejo, passava a maior parte do seu tempo. Na sala com livros, gravuras, mobiliário dos anos 50, o professor lia, não dispenva os jornais, escrevia poemas, novelas, parábolas, reflexões, policopiava reflexões como as ´Cartas Várias´ que enviava aos amigos e conhecidos.
Dedicava-se, igualmente, à tradução, dominava 15 línguas, das Bucólicas, Geórgias e da Eneida de Virgílio, gigantesco trabalho editado pelo Círculo de Leitores, pouco antes de desaparecer, bem como as obras completas de Homero e Catulo, saídas postumamente.
Não dispensava, porém, um passeio pelo jardim do Príncipe Real todas as manhã, em silêncio, antes do sol chegar e dos habituais frequentadores – idosos e namorados. Á espera do filósofo restavam os pombos, Sentava-se nos bancos e dava-lhes milho trazidos em pacotes de mercearia.
´Sou um aldeão , comporto-me como um aldeão, Ainda hoje quando tenho um horário a cumprir chego uma hora antes, como se fosse na província’. O professor nunca esqueceu , passada em Barca d`Alva, em plena região do Alto Douro, apesar da família ser de origem alentejana e algarvia. Dela vinha-lhe, por certo, a profunda paixão que sentia pelo mar. Em criança desejou ser marinheiro, mas desistiu. Com 18 anos conclui o ensino secundário com a classificação de 20 valores e, quatro anos depois, licenciou-se em Filologia Clássica, igualmente com a classificação máxima. Segue para Paris e doutora-se na Sorbonne, com uma tese sobre Montaigne.
Convive com António Sérgio, Jaime Cortesão e Jacinto Simões, exilados na capital francesa. No regresso a Portugal é colocado no Liceu José Estevão, em Aveiro. Demitido do ensino público, por não assinar a declaração de fidelidade ao Estado que a lei impunha, parte para Madrid, com uma bolsa do governo espanhol. O resultado é um estudosobre música espanhola.
Alunos ilustres
Fixa-se em Lisboa, dando aulas no Colégio Infante de Sagres e explicações particulares. Mário Soares, Álvaro Cunhal, Lagoa Henriques, Jorge de Mello são, entre muitos outros, seus alunos. Colabora na revista Seara Nova e no jornal Diabo. Inicia a publicação dos Cadernos de Iniciação Cultural e das Biografias de políticos, cientistas, santos, etc, que conhecem grande êxito.
Agostinho da Silva marca com o seu talento, poder da palavra, originalidade os círculos literários e políticos da época. A polícia do regime prende-o na cadeia do Aljube.
A edição do livro Cristianismo, o envio de uma carta ao cadeal.patriarca de Lisboa e a realização de palestras, em locais conotados com a esquerda, são os motivos evocados para a sua detenção. Na mesma altura a sua biblioteca é confiscada. Libertado por pressão de um grupo de intelectuais , vê-se obrigado a suspender a publicação das edições que dirigia.
Resolve partir para o estrangeiro. Estava-se em 1944. Fixa-se no Brasil, onde prefere conferências. Pouco depois muda-se para o Uruguai e leciona história e filosofia. Passa pela Argentina, onde organiza cursos Tde pedagogia moderna. Em 1940 volta ao Brasil.
Fixa-se e inicia uma obra extraordinária que o tornará uma referência mítica naquele país.
´Tive a sorte danada de não seguir uma carreira, Se o tivesse seguido sera hoje um reformado melancólico fumando cigarros tristes, achando que o país está acabado e não há nada a fazer, exactamente o contrário do que sou e penso´, evocou numa entrevista, aos 83 anos.
Funda quatro universidades
Em solo brasileiro ajuda a fundar quatro universidades, entre as quais as de Paraíba e Santa Catarina, e diversos centros de estudos superiores. Dedica-se ao ensino da filosofia, geografia, biologia, sociologia, antropologia, botânica, literatura, história e teatro. Professores universitários frequentam, discretamente misturados com os alunos, as suas aulas. Alguns dos mais notáveis intelectuais, escritores e artistas brasileiros afirmam terem sido profundamente influenciados por Agostinho da Silva,
Conversações com Diotima, Herta, Reflexão, Um Fernando Pessoa, Aproximações, são alguns dos livros que, entretanto, publica.
Regressa a Portugal
O professor que se naturaliza brasileiro, acompanha a oposição portuguesa portuguesa radicada no Brasil. Torna-se amigo dos presidentes Juscelino e Jánio Quadros, Este convida-o para seu assessor de política cultural externa. Ele aceita e funda o Centro de Estudos Portugueses da Baía. Ao deslocar-se em trabalho a Portugal é detido no aeroporto de Lisboa. Será o então ministro dos negócios estrangeiros, Franco Nogueira, a ir pessoalmente à polícia libertá-lo.
Do Brasil faz frequentes viagens ao Japão, Macau, Timor, em trabalho da Unesco. Para intensificar a presença cultural portuguesa no Japão funda um Centro de Estudos.
Em 1969, Agostinho da Silva é autorizado por Marcelo Caetano a regressar, mas com um visto válido para um mês.
´Devia ser o Ministério da Cultura a tomar a direcção do governo de Portugal. Uma das nossas desgraças é que fomos sempre governados pelo vedor da fazenda, quando este devia ser o simples caixa da empresa”. Uma clara referência a Salazar.
Reforma-se como professor titular das Universidades Federais do Brasil.
O professor ficou até ao fim da vida entre nós. “Vim porque previa que iriam passar-se na Península Ibérica coisas que seria muito interessante ver de perto”. Pouco depois, em Abril de 1974, dá-se a revolução. Quando Portugal faz a descolonização escreveu; “Tenho a ideia que estamos em vésperas de uma nova expansão, muito mais interessante do que a anterior, porque será uma expansão do espírito e do afecto”.
O professor desaparece em 1994, a 3 de Abril, um domingo de Páscoa, em Lisboa.
António Brás