Avaliações escolares, a grande farsa.

Avaliações escolares, a grande farsa.

Abril chegou e com ele a habitual interrupção lectiva da Páscoa. Nos últimos dias de Março as escolas foram ocupadas com as habituais reuniões de avaliação de final de período e a algazarra dos corredores e pátios foi substituída por silêncios e olhos colados a computadores. Nos dias anteriores, docentes em geral e diretores de turma em particular desesperaram diante grelhas de Exel, plataformas digitais onde precisaram de colocar diversas informações, elaboração de relatórios, justificações de faltas, atualização de assiduidades, troca de emails, textos de fundamentação de notas atribuídas.

Quando finalmente chegam as reuniões, estas acabam por passar com a rapidez de um foguete porque já ninguém quer alongar mais nada até porque é impensável atrasar o horário previsto. Nas reuniões de avaliação, única oportunidade de junção de todo o corpo docente, não se avalia nada e fala-se pouco de quase nada. Os professores estão exaustos e são muitos os que experienciam um burnout que os atira para um lugar muito fundo. Só querem ir embora daquele espaço físico que os tortura. Se há os que estão física e mentalmente derrotados há os que querem evitar o abismo e por isso desistiram de lutar para que tudo isto tenha alguma credibilidade. Mas gradualmente vão surgindo outros, mais novos, que já são produto de uma Escola que não os habituou a pensar criticamente e obedecem cegamente a tudo” são ordens…está escrito”.

O “não vale a pena” é, portanto, e por razões diversas, repetido como um mantra hipnótico sempre que alguém ousa questionar ou revindicar rigor na avaliação. Os professores só querem alcançar a hora mágica do regresso a casa e de poderem esquecer, por algum tempo, que existe escola e que são professores. Por isso, o “não vale a pena” é a frase de ordem do dia.

Não vale a pena falar do José que não sabe português, mas consegue ter “positiva” na disciplina graças à magia das contas do Exel, nem vale a pena falar da Diana que raramente vai à escola e por essa razão aos 15 anos está no 5º ano, mas este ano tem de passar. Também não vale a pena falar do Manuel que não trabalha, nunca trabalhou, tem resultados desastrosos, mas que se orgulha de apenas ter de ir às aulas para ir transitando de ano nem tão pouco vale a pena falar da Júlia que tem os pais separados e isso, pasme-se, parece constituir, nos dias de hoje, uma situação problemática e desta forma vamos lá a ser generosos na avaliação. Não, não vale a pena falar sobre o circo bizarro em que se transformou a escola que nunca foi tão institucionalmente mentirosa e demente nem tão refém de narrativas politicas cujo único objetivo é alcançar estatísticas simpáticas.

Em 2021 Santana Castilho escreveu na sua habitual crónica no Público “a pressão que o utilitarismo e o consumismo, as medidas e os números exercem sobre os que pensam é tal, que muitos acabam desistindo da Filosofia, da História e da Literatura e aceitam acriticamente o império da Estatística.” Lamentavelmente, ao longo de décadas o Estado tem construído um modelo de Escola Pública cuja única finalidade é preparar funcionários mecanicamente funcionais, acríticos, obedientes, prontos a abdicar de direitos, incluindo horários de trabalho. Trabalhadores que se envergonham por terem vida pessoal e confundem local de trabalho com o lar.

No passado da 27 de Março, Castilho interrogou-se sobre o que deve ser um currículo do ensino Básico e lançou o repto sobre o que se deve esperar de indivíduos no final da sua escolarização. Dessa análise podemos então perceber que futuro nos estará reservado.

O paradigma de uma Escola de qualidade tem de se reger por critérios que garantam a formação de gente capaz de produzir pensamento, criar soluções, trabalhar com ética, em comunhão com uma gramática de solidariedade e humanismo. Gente consciente dos desafios e que não opta por atalhos duvidosos, que não cruza os braços nem desvia o olhar, que luta e se esforça, que reflecte e amadurece, assume erros e necessidade de mudança. Gente que não se deixa manipular em narrativas mentirosas e perigosas, gente que lê, gente que estuda em permanência, gente que observa e escuta e não teme.

Estamos em Abril, as avaliações do 2ºperíodo acabaram de ser divulgadas e há uma certeza em torno delas: os casos de sucesso escolar são, em elevada percentagem, resultado de uma pirueta rebuscada, um logro que coloca tudo em causa. Se houve um tempo em que o conhecimento científico era pouco rigoroso, agora são os mecanismos de avaliação que se esvaziaram de seriedade sob um manto indizível de engenharias burocráticas. Nunca a Escola se arvorou tanto de ser rigorosa e justa com as avaliações e nunca estas foram tão mentirosas. Os alunos que têm poucas expectativas sobre si e que convivem com modelos pouco recomendáveis em casa, quando percebem que não precisam de fazer nada a não ser estar de corpo presente nas aulas para passar de ano, deixam de fingir que se envolvem e se preocupam com o seu processo de aprendizagem e desenvolvimento intelectual. Os outros, os que se mantêm fiéis a um compromisso sério com a aprendizagem, necessitam cada vez mais de apelar a uma estrutura emocional muito consistente para conseguirem resistir à tentação da preguiça e da voragem do sucesso ilusório.

A Escola Pública deve garantir uma Educação que tenha o conhecimento científico e cultural como protagonista, o desenvolvimento da curiosidade e da criatividade como bússolas e um currículo assente em valores humanistas, na solidariedade e no respeito. A Escola deve ter a premissa inegociável de ser fiel à sua etimologia que nos remete para o significado de guiar para fora  potenciando o desenvolvimento do que de melhor cada indivíduo é. 

O desinvestimento e a falta de seriedade na Escola Pública têm custos que não cabem em nenhum relatório ou gráfico porque possuem a dimensão do incomensurável.

                                                                                                          Paula Timóteo

Paula Timóteo

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