Amadeo de Souza Cardoso I Um artista peregrino
No final do século XIX, Portugal vivia um dos períodos mais complexos da sua História. Com uma situação económica marcada por dificuldades estruturais, estagnação e dependência de capitais estrangeiros, os últimos anos de oitocentos foi um período ainda marcado pelo conflito crescente entre Portugal e a Grã-Bretanha no que dizia respeito à ocupação de territórios em África que foi a grande questão discutida na conferência de Berlim (1984/1985). Em 1887, a tensão era grande após a apresentação, em 1886, por parte de Portugal, do Mapa Cor-de-Rosa” que reivindicava como seu todo o território da costa ocidental de Angola à costa oriental de Moçambique. O Ultimato Britânico que aniquilaria esta pretensão, estava a uns escassos 3 anos e o acatamento de D. Carlos à ordem dada por Inglaterra iria gerar uma onda de indignação que muito contribuiria para o fim da monarquia.
Mas na casa Emília Cândida Ferreira Cardoso e José Emygdio de Sousa Cardoso, um reconhecido produtor vinícola, o ano de 1887 foi um ano bom porque trouxe consigo a felicidade da chegada de um filho. Eram 2h30 da madrugada do dia 14 de Novembro quando Amadeu Ferreira de Sousa Cardoso abriu pela primeira vez os olhos ao mundo e nunca mais o mundo voltou a ser olhado da mesma maneira. Não sabemos se chovia ou a noite estava serena nem há registos sobre como é que o dia terá amanhecido, mas hoje sabemos o que os pais não podiam sequer imaginar. Aquele que acabara de nascer seria um filho diferente, um indivíduo singular e genial, um cometa brilhante, uma alma em permanente busca e insaciável observação e que atravessaria o universo de forma rápida, mas deixando um rasto de luz e transformação.
Muito cedo se percebeu que os olhos de Amadeo viam o que passava despercebido aos outros e fazia dos lápis os instrumentos com que povoava cadernos e livros com um universo de desenhos. Muitos retratos, mas também experiências gráficas podem ser vistos em compêndios e cadernos escolares que fazem parte do espólio do artista e que são reveladoras do nível de concentração que o jovem Amadeo dispensaria às aulas…
Amadeo em criança
´O apelo do desenho, do traçar em papel o mundo que já lhe povoava o olhar e a alma, falavam mais alto. A caricatura, sobretudo a partir do seu ingresso na Real Academia de Belas-Artes de Lisboa, para onde viera estudar arquitetura, marca o seu percurso inicial. Aliás, a sua primeira publicação autoral num periódico português foi a ementa de um jantar de homenagem ao director de “O Mundo Elegante” e correspondente em Paris da imprensa portuguesa, que Amadeu ilustrou povoando-a com as caricaturas de todos os participantes do evento. O facto da caricatura ter sido o seu primeiro discurso artístico terá contribuído para que permaneça como uma das facetas menos conhecida de Amadeo, mas sem dúvida que é uma fase essencial para entender o artista e a sua multifacetada consciência criativa. Como diz Helena de Freitas, Amadeo de Souza-Cardoso é dificilmente definível, «não tem um discurso regular, desloca-se com destreza entre vários registos na vida e na obra. Percebe-se na diversidade da pose (entre o provinciano e o cosmopolita), no estilo versátil da escrita, na letra instável, no desconcertante traçado das assinaturas».
No dia em que fez 19 anos parte da capital portuguesa e ruma a Paris onde permanecerá 8 intensos anos. Antes havia estudado no Liceu de Amarante e em Coimbra além de uma breve experiência de trabalho aos 16 anos num afamado estabelecimento comercial, a Camisaria Confiança, no Porto, propriedade de um familiar. A sua partida para a capital francesa em 1906, dá-se numa altura em que já se adivinha o afastamento do curso de arquitectura ao mesmo tempo que reflecte um Amadeo desiludido com a vida de Lisboa tecendo sobre a capital um pensamento crítico bastante cáustico “Lisboa é boa para conselheiros, pelintras – e para todos os outros mariolas”, escreveu. “O que ela não serve é para gente moça, para quem ainda tem no peito ilusões sagradas como ideais, como culto. Isto é: para uns, Lisboa serve apenas para estragá-los. Lisboa é um símbolo, o resumo da torpeza nacional: aos que não corrompe, enoja-os.”
Paris, e em especial Montparnasse, é naquela altura o centro da vida artística, o epicentro da pintura e da escultura, o olho do furacão do que de melhor se fazia na Europa, uma verdadeira incubadora de talentos e onde fervilhava uma intensa actividade criativa. E Amadeo sabia que era nesse oceano fecundo que devia mergulhar para construir o seu caminho. Os conhecimentos de arquitectura passam a ser encarados como uma ferramenta enriquecedora das suas explorações artísticas, mas definitivamente começa a perceber não é aquele o seu caminho apesar da promessa inicial feita aos pais quando ruma a Paris.
Amadeo soube precocemente conciliar a sua genialidade plástica com uma capacidade de leitura da realidade, qualidade literária (o seu espólio epistolar é disso prova) e uma facilidade no relacionamento social que lhe dará oportunidade de estabelecer uma rede de amizades e conhecimentos frutuosos. Em Paris, onde é recebido pelo amarantino Acácio Lino, rapidamente se integra no grupo de artistas portugueses residentes na cidade da luz e que seriam, nos primeiros meses, os seus grandes amigos, com destaque para Domingos Rebelo, Eduardo Viana, Manuel Bentes, Emmérico Nunes e o poeta e seu conterrâneo Teixeira de Pascoaes. Manuel Laranjeira, outro dos seus amigos mais próximo, reconhecia em Amadeo “um artista no significado absoluto do termo”. Várias são as fotos e caricaturas que registam esta cumplicidade.
Amadeo, no ateliê de Acácio Lino com alguns dos seus amigos (Paris 1907)
Durante os anos que passa em Paris, Amadeo estabelece uma fértil ligação com outros artistas que residiam em Paris afastando-se gradualmente dos seus compatriotas que, segundo ele, “marcham numa rotina atrasada” que contraria a sua índole de permanente busca dos passos seguintes. Amadeo não hesita em arriscar, experimentar e ousar procurando uma narrativa própria e um rumo sem fidelidades a escolas nem a ligações que não o estimulem. Entre os artistas com quem se relaciona alguns já haviam alcançado o patamar do reconhecimento, como Braque e Picasso considerados os fundadores do cubismo. A historiadora Helena de Freitas resume bem este período em que Amadeu consegue colocar Portugal no tabuleiro do xadrez artístico internacional “O artista desenvolveu, entre Paris e Manhufe, a mais séria possibilidade de arte moderna em Portugal num diálogo internacional, intenso, mas pouco conhecido, com os artistas do seu tempo“.
Caricatura de Emmérico Nunes 1910
O jovem Amadeo virá com frequência a Portugal e não hesitará em espelhar na sua obra o deslumbramento que sentia pelas cores natureza da sua terra. A ligação a Portugal, e a Manhufe em particular, é umbilical como ele próprio revela numa carta à mãe após uma breve estadia em Portugal “Gostei muito de estar em Manhufe. Fazia um sol intenso (…) Agora estou em Paris, não imagina a tristeza que me fez encontrar esta atmosfera parda, este sol anémico. O que me valeu foi encontrar o Vianna e levamos o dia a falar do Portugal prodigioso, paiz supremo para artistas. É pena que não haja um forte meio de arte”. A tristeza pela apatia artística que se vive em Portugal também é confirmada quando Amadeo confessa à irmã Helena que em Paris “respira-se, em Portugal abafa-se”.
Mas apesar do apego quer a Amarante quer a Paris, Amadeo não lida bem com longas permanências no mesmo lugar, mesmo se este for um dos seus preferidos. Muito provavelmente o apelo de novos estímulos fala mais alto. Se em Paris lastimava a “atmosfera parda” em Manhufe, dizia-se “farto da vida no campo” e do “sinistro Inverno”. Estas variações de ânimo eram reconhecidas pelo próprio que confessava numa carta a Lucie, com quem casaria em 1914, ter “um espírito complicado, susceptível de crises, que o [seu] estado moral e intelectual sofre sem cessar manifestações violentas de toda a sorte e que [tem] mais fases do que a Lua”.
Amadeo tinha sede do mundo e de explanar o seu olhar pelas cores, texturas e pigmentos de que a Natureza se reveste. Por isso e tal como Freitas refere na Fotobiografia do pintor, “a viagem tem uma componente estruturante da sua personalidade artística”. Numa das muitas cartas que escreveu à mãe Amadeo diz “As viagens são o grande livro do artista. São-lhe tão necessárias como a bíblia e o latim a um padre”. A família chamar-lhe-ia “peregrino”. A partir de 1907 Amadeo elege a Bretanha como destino preferido o que aliás era comum entre os artistas do início do século XX, mas Espanha, em especial as cidades Salamanca e Madrid, também foi muito mais que um território de passagem nas suas viagens entre França e Portugal.
Em Março de 1911, exibe alguns dos seus desenhos numa exposição organizada no seu ateliê em parceria com um dos seus grandes amigos, Amedeo Modigliani, que muito choraria a morte de Amadeo ocorrida poucos anos depois. Entre os visitantes o destaque vai para Picasso e o crítico de arte, Apollinaire, conhecido não apenas pela sua obra literária, principalmente a poesia gráfica, mas pela sua militância cultural e voz amplificadora das vanguardas artísticas do seu tempo. Partirá dele a ideia de aplicar o termo orfismo ao que ele considerava ser um amplo movimento artístico dos novos artistas empenhados em acrescentar cor e lirismo ao cubismo de Picasso. Um mês depois, também em Paris, Amadeo figurará entre os nomes grandes da pintura no XXVII Salon des Indépendents, onde estariam também expostos trabalhos de artistas como Robert Delaunay que, juntamente com a sua mulher Sonia, tornar-se-á um amigo próximo de Amadeo.
Em 1912, volta a expor no Salon des Indépendents, seguindo-se nesse e nos anos sucessivos exposições em França, Alemanha e Estados Unidos porque para Amadeo era importante também expor sua pintura fora do circuito parisiense. De registar, entre as importantes exposições coletivas, a famosa Exposição Internacional de Arte Moderna de 1913, também conhecida como Armory Show, que expôs pela primeira vez a arte moderna europeia nos EUA (em Nova York, Chicago e Boston). Amadeo apresentou um total de oito obras que partilharam o espaço com obras de Braque, Matisse, Duchamp, Gleizes entre outros.
Com a inclusão de vários trabalhos em algumas das mais notáveis e vanguardistas exposições do início do século XX, Amadeo torna-se num nome incontestado da elite artística da sua época e um dos percursores de uma nova atitude artística. No caso do pintor amarantino trata-se de uma postura que não pretende seguir nenhum movimento, mas que apenas tem como único objectivo a originalidade. Amadeo era peremptório na sua não adesão a qualquer escola. Em entrevista concedida a propósito das exposições que realiza no Porto e em Lisboa no final de 1916 e a propósito da variedade de estilos que atravessam as suas obras, Amadeo insiste na sua plena liberdade artística: “Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstracionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.”
O início da Grande Guerra obrigaria Amadeo a manter-se em Portugal o que lhe permitiu estreitar laços com o casal Delaunay que se fixara entretanto em Vila do Conde. Com os Delaunay chegaria a discutir projetos futuros de exposições nomeadamente em Barcelona, Estocolmo e Noruega.
A permanência forçada no país leva-o a sentir uma enorme vontade de regressar a Paris até porque se confronta com dificuldades para adquirir material, mas o fulgor do trabalho não abranda como nos revela o próprio Amadeo numa carta enviada em 1916 a Sonia Delaunay onde afirma que “trabalha furiosamente”. Os resultados desse período seriam expostos no final de 1916 no Porto e em Lisboa, dois acontecimentos que causaram furor e que o próprio Amadeo definiu como as primeiras grandes exposições de pintura moderna em Portugal. Os trabalhos dados a conhecer a cerca de 30 mil visitantes tornaram-se num marco do modernismo português e, como seria talvez de esperar, não passaram incólumes de polémica, em particular na exposição no Jardim Passos Manuel, no Porto, onde Amadeo chegou a ser agredido. “ (…) as pessoas ficaram abismadas pela nova expressão da arte, pelas técnicas e processos novos. Os que queriam criticá-la, não sabiam como e saíram-se grotescamente, indicando o manicómio e chamando a atenção do chefe de polícia para o meu estado de loucura” escreveu Amadeo ao seu amigo e promotor da sua obra em Nova Iorque, Walter Pach. Além do episódio de violência física que sofreu ao sair da exposição, houve um primeiro momento insólito no próprio dia da inauguração protagonizado por Eduardo Artayete, um misto de poeta romântico e boémio noctívago. Nesse dia, no auge da cerimónia, ouviram-se, , gritos de “acudam-me, acudam-me, que horríveis tonturas …” Era Artayete que, agachado num dos cantos da sala e com as mãos na cabeça, se indignava contra o tipo de pintura ali exposta.
Entre as várias críticas e opiniões emitidas sobre a obra de Amadeo, destaca-se a opinião elogiosa de Almada Negreiros que, no folheto que acompanhava a exposição do pintor amarantino na Liga Naval de Lisboa, escreveria acerca de Amadeo que este era “a primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX”. De resto, Amadeo participaria no primeiro e único número da revista “Portugal Futurista”, além do trabalho colaborativo também com Almada na obra K4 O Quadrado Azul, em 1917. Também Fernando Pessoa admirava assumidamente Amadeo que considerando-o o pintor mais significativo do seu tempo.
Já aqui fizemos referência à relação próxima que Amadeo estabeleceu, em Paris, com Amadeo Modigliani que talvez possa ser considerada a sua alma artística gémea O uso de cores intensas, a expressividade plasmada nas obras de Modigliani deslumbravam Amadeo que de igual forma se deixou envolver com as temáticas naturalistas e realidades simples de Henri Rousseau, de uma geração anterior à dos dois Amadeos, que o jovem amarantino irá trabalhar com um olhar abstracionista. Amadeo acolheu as duas influências com a liberdade com que bebia de todas as escolas e tendências o que o seduzia e encantava sem seguidismos que ele repudiava. Tal como havia encarado os conhecimentos de arquitectura como instrumentos de enriquecimento do seu caminho artístico, também as linguagens diversas dos seus contemporâneos eram material de trabalho exploratório na incessante busca do que poderia ser o seu alfabeto pictórico pessoal.
Quanto aos temas, a natureza tem uma forte presença na obra de Amadeo mas de igual forma a música assume um protagonismo marcante como é disso exemplo o seu quadro Parto da viola onde Amadeo explora a relação entre música, forma e cores vibrantes de uma forma absolutamente avassaladora. A presença na sua obra de instrumentos musicais como o violino, violoncelo e outros de cariz mais popular, como a viola, o bandolim ou o cavaquinho, não acontece apenas porque o artista aprecia a música no seu todo incluindo o interesse pelos instrumentos e executantes, mas também espelha a sua convicção de que há uma ligação fecunda entre as artes. De resto, era vulgar encontrar Amadeo nas tertúlias parisienses a tocar e a cantar à desgarrada ou a assistir a concertos com regularidade. Por todos os motivos a presença da música na sua obra é tão natural como ver as montanhas de Manhufe nos seus quadros
Moinho (Amadeo é fortemente marcado pelas paisagens e temas da sua terra natal)
´Durante os seus últimos dois anos de vida, Amadeo trabalha intensamente em Manhufe. É bastante provável que se sentisse um pouco solitário, mas talvez essa sua quietude consigo próprio lhe tenha proporcionado aprofundar o seu rumo plástico de uma forma cada vez mais complexa e única. Em Outubro de 1918, em plena epidemia da pneumónica, Amadeo interrompe o seu rumo artístico e refugia-se na casa de férias da família, em Espinho, julgando-se aí mais protegido. Nesse que será o mês da sua morte confessa na última carta que terá escrito ao irmão António “Não sei quê que me diz que vai haver grande mudança na vida da nossa família. Será pessimismo meu, oxalá!”.
Parto da viola (1916)
A pneumónica teve um efeito devastador a nível global e em Portugal poderá mesmo ter sido responsável pela morte de 2% da população. Na família Souza-Cardoso o drama também entrou pela porta grande. Poucos dias após a perda de uma das suas irmãs, Amadeo de Souza-Cardoso morreria em Espinho, no dia 25 de Outubro de 1918 deixando uma obra por cumprir e que se adivinhava tão ou mais extraordinária como a que havia já produzido na sua curta existência.
Amadeo, foi um jovem em constante peregrinação ao insondável universo da criatividade e de uma gramática estética intensamente expressiva. Uma viagem íntima pela sua alma inquieta e pelo mundo, precocemente interrompida. O seu espírito incansável, liberdade artística e inconformismo levou-o a explorar técnicas diferentes, por vezes num mesmo quadro, a deslumbrar-se com poéticas plásticas diversas e até a trabalhar em mais do que uma obra ao mesmo tempo “visto me ser completamente impossível trabalhar só num quadro” como afirma numa entrevista ao Jornal de Coimbra em 1916. Tudo porque Amadeo tinha um universo imenso para revelar e, quem sabe, haveria uma secreta intuição de uma vida brevíssima que não lhe seria o bastante para o tanto que desejava fazer.
Amadeo morreu jovem, mas continua vivo e a prova do crescente interesse que a sua obra continua a suscitar é a recente notícia da presença de duas das suas obras na exposição sobre o Orfismo em Paris ( 1910-1930) a ser inaugurada em Novembro no museu Guggenheim de Nova Iorque. Na mostra haverá ainda lugar para nomes grandes como o português Eduardo Viana, Robert Delaunay, Sonia Delaunay, Marcel Duchamp, Mainie Jellett, Frantisek Kupka, Francis Picabia.
Ver Amadeo numa exposição desta grandeza será sem dúvida uma excelente forma de celebrar o 137º aniversário do seu nascimento.
Ana Paula Timóteo