Vista Alegre I Duzentos Anos
No 1º quartel do século XIX, Portugal vivia uma fase politicamente conturbada já que após a Revolução Liberal, o país continuava em plena convulsão política com tentativas de reposição do absolutismo. Ao mesmo tempo a nação tentava recuperar o seu rumo após o choque que a independência do Brasil tinha provocado. Mas este cenário não impediu a concretização de um projecto empresarial pioneiro no país. O liberalismo estava definitivamente em marcha e inspirava espíritos audazes como o do empresário José Ferreira Pinto Basto ( Porto, 16 de Setembro de 1774 – Lisboa, 23 de Setembro de 1839), presidente da Associação Comercial de Lisboa. Em 1824, em pleno contexto de instabilidade política, o empresário pede e consegue o alvará concedido por D. João VI que autorizou o funcionamento da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre a primeira unidade industrial dedicada à produção de porcelana em Portugal passando a beneficiar de todas as graças, privilégios e isenções de que gozam, ou gozarem de futuro, as Fábricas Nacionais. Cinco anos depois, a Vista Alegre receberia o título de Real Fábrica, num claro reconhecimento da qualidade da sua arte e sucesso industrial. Tudo começara em 1812 quando o empresário com uma visão audaciosa e corajosa, adquirira a Quinta da Ermida, perto da vila de ílhavo e junto da Ria de Aveiro, região rica em combustíveis, barro, areias brancas e finas e seixos cristalizados, elementos fundamentais para vidros e porcelanas. Seguir-se-ia, em 1816, a compra em hasta pública, da Capela da Vista Alegre e terrenos envolventes, tendo aí sido instalada a Fábrica.
Inicialmente a Fábrica dedicou-se à produção do vidro e cerâmica “pó de pedra” (substância constituída por pó de granito (quartzo, feldspato e mica) que começou a ser empregue no Reino Unido no séc. XVIII e em Portugal a partir de 1813. Havia dificuldades na manufactura da cerâmica para as quais o filho do fundador, Augusto Ferreira Pinto Basto, procurará resposta numa visita que fez à fábrica francesa de Sèvres. Aí terá estudado a composição da pasta e obtido conhecimentos que se tornariam relevantes na descoberta em 1832 de abundantes jazigos de caulino a norte de ílhavo. Ao longo dos anos seguintes a Fábrica irá assistir a progresso tecnológicos com impacto positivo na qualidade da sua produção que beneficiará igualmente da acertada estratégia de investimento nos recursos humanos com a contratação de mestres estrangeiros com experiência na produção cerâmica, determinante para a formação de uma mão-de-obra local altamente especializada. De sublinhar a contratação do artista Victor Rousseau em 1835 que constituiu uma revolução na manufatura da porcelana Vista Alegre, com a introdução de técnicas e decorações totalmente inovadoras. Em 1880 cessou a produção de vidro, tendo a Fábrica se dedicado exclusivamente ao fabrico de porcelana
A participação da Fábrica em importantes eventos internacionais como a Exposição Universal em Londres (1851) ou a Exposição Universal de Paris (1867) comprovam o prestígio que a marca foi conquistando.
Apesar de um percurso em ascensão e sempre acompanhado com as naturais evoluções estéticas, a passagem para o século XX foi marcado por dificuldades que pareceram anunciar o fim da empresa. Mais uma vez Portugal vivia um período histórico de crise política e económica a que se terá somado dificuldades internas na empresa resultantes de uma gestão pouco eficiente e um rumo artístico menos conseguido. O período mais sombrio iria arrastar-se até1924, altura em que se inicia a recuperação com a nomeação de João Theodoro Ferreira Pinto Basto como Administrador-Delegado. O período de ressurgimento não se concretizou apenas no crescimento e renovação na área industrial, mas igualmente ao nível criativo que é a alma da marca e o que determina a sua afirmação no mercado nacional e internacional. A influência da Art Deco ou do Funcionalismo revelou que a Vista Alegre se fundia com a modernidade com os anos seguintes a marcarem uma fase de consolidação. Importa referir que para a renovação artística muito terá contribuído a colaboração de artistas como Roque Gameiro; Raul Lino, Leitão de Barros, Delfim Maia entre outros.
O trajeto de sucesso da Fábrica irá fortalecer-se nas décadas seguintes mostrando a sua capacidade de resposta face ao aumento exponencial do consumo interno e externo sem nunca abdicar daquilo que a continua a distinguir das grandes fábricas europeias: o seu compromisso com a vertente manufactureira, altamente especializada e centrada no saber-fazer dos operários e nas tradições centenárias da empresa tendo sido reabilitado o conceito de peças únicas como disso foi exemplo o serviço produzido para Sua Majestade Isabel II, Rainha de Inglaterra.
O trajecto da Vista Alegre, após a recuperação da fase sombria, tem sido pontuado por momentos marcantes reveladores de uma caminhada sólida. A inauguração em 1964 do Museu da Vista Alegre e em 1985 do Centro de Arte e Desenvolvimento da Empresa (CADE), este último com o objectivo de estimular novos discursos estéticos e fortalecer a componente formativa nas áreas do desenho, pintura e escultura, são exemplos de uma visão estratégica que não se confina em estreitos horizontes de uma mera produção industrial. Prova da maturidade e reconhecimento global da empresa estão a criação do Clube de Coleccionadores em 1985 que reflete a importância da Vista Alegre no mercado da arte bem como a realização de exposições internacionais, nos finais da década de 80, em locais como o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque ou o Pallazo Reale em Milão, contribuições decisivas para a divulgação e internacionalização da marca Vista Alegre.
Em 1997 concretiza-se a fusão com o grupo cerâmico Cerexport, que originou quase a duplicação do volume de negócios da Vista Alegre, nomeadamente nos mercados internacionais. Em Maio de 2001 dá-se a fusão do Grupo Vista Alegre com o grupo Atlantis, cruzando-se novamente o vidro, e agora também o cristal, com a história da empresa.
No bicentenário da Fábrica de Porcelana da Vista Alegre que é considerada a mais importante fábrica de porcelanas da Península Ibérica, terminamos este nosso tributo regressando ao seu início quando um reconhecido empresário portuense, influenciado pelo sucesso da fábrica de vidro da Marinha Grande, decidiu dar início a uma História empresarial de sucesso que soube ultrapassar dificuldades, cruzou épocas de grandes incertezas e dificuldades reinventou-se e associou-se em parcerias que a robusteceram. Em 2024 celebram-se 200 anos de uma marca que vai muito além do que seria uma mera empresa industrial.
A Vista Alegre incorporado sabiamente e ao longo do tempo o conceito defendido por William Morris, socialista romântico do século XIX e percursor do design, de que tudo o que é útil deve ser belo e deve dar prazer a fazer, construir, desenhar.
Paula Timóteo