Picasso e a Cerâmica I ”O Génio de uma Arte Maior”
A genialidade pode apresentar-se tímida ou exuberante, expressar-se de múltiplas formas e nem sempre ser reconhecida no seu próprio tempo, mas nem Nasoni nem Picasso se poderiam queixar de falta de enaltecimento. Um, arquitecto do século XVIII, desenvolveu grande parte da sua obra na cidade do Porto onde as várias encomendas de relevo comprovam o aplauso consensual dos méritos de Nasoni, o outro, génio tão versátil quanto a sua criatividade sem limites o permitia, foi um homem do mundo, apesar de ter vivido sobretudo em França. Ambos conheceram o sucesso e distinção em vida.
Na capital do Norte, uma parte significativa dos mais emblemáticos edifícios do barroco foram concebidos por Nasoni. A icónica Torre dos Clérigos é muito provavelmente uma das jóias do barroco portuense mais emblemática e certamente a mais conhecida das suas realizações. Tendo beneficiado de obras de renovação em 2014, o ex-libris da cidade passou a conhecer uma vertente museológica passando a oferecer aos visitantes um conhecimento mais alargado. A intervenção foi feita também com o objectivo de possibilitar o acesso a zonas que em tempos foram privadas e destinadas ao quotidiano da Irmandade dos Clérigos e esse objectivo foi conseguido de forma verdadeiramente extraordinária. O restauro e recuperação quer da Torre quer da igreja, da autoria do Arq.º João Carlos dos Santos, recebeu já diversos prémios e só por si merece uma visita ao monumento. É precisamente num dos espaços renovados que se encontra actualmente mais uma exposição desta vez dedicada a Pablo Picasso. Até 12 de Janeiro, naquela que é a XIV exposição temporária no Museu da Torre dos Clérigos, podemos testemunhar uma faceta para muitos menos conhecida de Picasso, mas não menos extraordinária. Sob o lema “Picasso e a Cerâmica: o Génio de uma Arte Maior”, são mostradas 32 peças de uma colecção privada que reúne obras desde as primeiras criações aos últimos trabalhos, o que nos permite seguir a linha cronológica da obra de Picasso na arte ceramista.
Na exposição, destacam-se peças como o “Mocho-da-Floresta”, um jarro de cerâmica branca parcialmente vidrado, pintado em cores, de 1968, ou a “Pomba em Cama de Palha”, um prato de faiança branca vidrada pintado a cores, de 1949. Uma das peças mais recentes é a placa de terracota “Rosto com Gola”, datada de 1971, apenas dois anos antes da sua morte.
O fascínio que inevitavelmente as peças nos provocam, leva-nos também a recuperar um conceito antigo ligado à cerâmica e que alarga a sua função utilitária reconhecendo o potencial estético e decorativo que cada peça pode representar.
Neste percurso expositivo, as peças são mostradas em articulação com fotografias que nos permitem uma experiência imersiva no mundo “picassiano” e que nos faz sentir convidados a entrar nos seus espaços de trabalho ou em momentos de informalidade.
Quando pensamos em Picasso é inevitável pensarmos no legado pictórico, mas as experiências em cerâmica surgiram cedo na vida de Picasso parecendo ser consensual que tenham coincidido com uma fase em que trabalhou com o ceramista Paco Durio. É, aliás, deste período a peça “Cabeça de Homem” (1906). Esta dinâmica de trabalho seria repetida com o ceramista holandês Jean van Dongen em 1929, mas terá sido em 1946, quando Picasso trabalhou no sul de França, que, ao visitar a comuna de Vallauris, percebeu as amplas possibilidades que a cerâmica lhe oferecia após ter conhecido os proprietários da casa Madoura e uma breve experiência que teve nas suas oficinas. Seria na casa Madoura que Picasso produziria, num primeiro momento, três peças de acordo com novas técnicas ali conhecidas para ali regressar decorrido um ano munido de ideias e entusiasmo. E nunca mais abandonou o seu compromisso com a cerâmica, para desespero de muitos que consideravam esta uma arte menor. Pelo contrário, Picasso via neste novo registo artístico possibilidades que a pintura ou escultura não lhe permitiam para além de alcançar uma maior disseminação da sua arte considerando o valor das peças mais acessível.
Seria, pois, num contexto de pós guerra e numa fase da sua vida pessoal marcada por um novo amor e o nascimento de dois filhos que Picasso viveria uma época de intensa produção o que obrigou a uma dedicação quase total da casa Madoura, como lembra Nuno Viana no catálogo não deixando de lembrar que “a cerâmica ao longo de muitos anos foi-se constituindo um pouco como o “parente pobre” de todo um corpo monstruoso de criação, e sem razões fundamentais sólidas para explicar esse facto. Picasso e cerâmica, significa a união de um génio a uma arte maior e ancestral”. De facto, e acima de tudo, aquele que é considerado por muitos o maior artista do século XX, não desconsiderava nenhum registo de execução da sua criatividade e via na cerâmica uma possibilidade de trabalho com uma componente intelectual significativa. A exploração tridimensional e táctil que a cerâmica oferecia associada à possibilidade de diálogo com a pintura, proporcionava a Picasso um universo imenso de capacidades, um estender de limites na exploração de texturas para lá dos estreitos horizontes do tangível. Era o exercício da Liberdade, a consumação do seu fecundo pensamento imaginativo. Como refere Alexandre Alves Costa “A experiência com a cerâmica foi muito estimulante para Picasso (…) talvez porque tenha encontrado, facilmente manuseável, uma expressão artística entre a pintura e a escultura que, ainda, dada a pequena dimensão das peças lhe permitiu uma enorme produção a que nem sempre (…) foi dada a sua real importância”.
Quanto às temáticas e retomando o discurso de Nuno Viana, “A herança mediterrânica e a cerâmica popular e tradicional são domínios que estão presentes continuadamente no trabalho do artista(…) Outra temática que com o passar dos anos começou a ganhar cada vez mais força foi a imagem classicista. Em 1957, após a visita à exposição de cerâmica espanhola ocorrida em Cannes, Picasso encomendaria à Madoura a produção de grandes pratos espanhóis, inspirados em modelos moçárabes e transportando-nos à antiga tradição mediterrânica, muitas vezes decorados com corujas, faunos e touros”. Mas para além destas escolhas podemos facilmente identificar na obra ceramista de Picasso a marca de Cervantes e do seu D. Quixote bem como a tauromaquia com a sua iconografia ou a representação feminina, um dos seus temas preferidos.
Importa dizer que a exposição que a Torre dos Clérigos acolhe por estes dias reúne um acervo proveniente da colecção particular da família Mitelman, dos EUA sendo o Porto o primeiro espaço da União Europeia a exibi-la. Visitar a exposição contemplando demoradamente as peças é uma oportunidade de excepção que nos permite não só enriquecer o nosso entendimento sobre a versatilidade artística de Picasso como nos convida a repensar a importância da cerâmica na História da arte e na cultura humana como refere o Padre Manuel Fernando no texto de abertura do catálogo.
Paula Timóteo