Júlio Pomar I Traços de genealidade
Lembramo-nos dele de cabelos brancos, escassa barba, também ela branca, olhos como berlindes pequeninos espreitando o mundo por detrás de uns óculos sem armação. Lembramo-nos do seu sorriso malandro e das suas mãos que falavam e faz-nos falta a continuação da sua obra, faz-nos falta a expectativa de saber que novo ciclo artístico estaria a ser preparado…
Pomar de apelido e Júlio de nome próprio nasceu a 10 de Janeiro de 1926 e é fácil imaginá-lo ainda vivo e a trabalhar nos seus ateliês dançando aquela coreografia de aproximação e afastamento do quadro que estivesse a fazer. Mas apesar de não sabermos que novos rumos tomaria a sua arte se por cá ainda andasse, o que ficou garante a imortalidade do seu nome e da sua obra.
Numa entrevista ao DN em 2016, Pomar recorda a criança que fora como alguém “de rabo para o ar, a fazer bonecos em todos os papéis que apanhava. Era uma criança muito metida comigo, que se refugiava no gosto e na prática quase excessiva do desenho.” por isso, não nos surpreende vê-lo a entrar na Escola António Arroio seguindo-se Belas Artes.
Aos 16 anos, quando já frequentava a Escola de Belas- Artes de Lisboa, participa pela 1ª vez numa exposição, em parceria com Fernando Azevedo, Pedro Oom, Marcelino Vesperira e José Gomes Pereira. A “galeria” era, nem mais nem menos, que um quarto que alugara, em conjunto com os colegas, na Rua das Flores, e atraiu para seu grande espanto, a atenção de artistas já aclamados. Entre eles contava-se Almada Negreiros que acabaria por ser a 1ª pessoa a comprar um quadro a Pomar. A pintura, hoje desaparecida, intitulava-se “Os Saltimbancos” tema do agrado de Almada que irá representá-lo num dos painéis da Gare Marítima da Rocha Conde D’Óbidos (1948). Mário Dionisio, na Seara Nova, escreveria na altura um artigo premonitório, intitulado: “O princípio de um grande pintor?”.
Pomar não tardará a desiludir-se com a Escola de Lisboa e em 1944 vai para a Escola de Belas-Artes do Porto de onde é expulso dois anos mais tarde devido ao seu activismo político. Sobre a sua passagem pela Escola António Arroio e pelas Escolas de Belas-Artes, Pomar confidenciaria mais tarde que Velázquez lhe ensinara mais do que todos os professores que tivera.
O jovem artista acabaria por vir a desenvolver uma carreira multifacetada destacando-se a pintura e o desenho, que confidenciaria, em entrevista à RTP em 2005, ser um exercício tão difícil como pensar. Mas não só na pintura e desenho encontramos a expressão do universo fantástico que habitava a alma de Pomar. Também a cerâmica, ilustração, tapeçaria, vitral, cenografia para teatro, decoração mural em azulejo (de onde podem destacar-se os painéis para a estação de metropolitano de Alto dos Moinhos em Lisboa (1983-84) receberam a atenção de Pomar. A gravura teve uma expressão significativa na vida do artista tendo fundado em 1956, em conjunto com outros colegas a Gravura, Cooperativa de Produção e Divulgação de Obras Gráficas, da qual será o principal animador até 1963. A arte da gravura surgiria com uma intenção democratizante permitindo um aproximar da arte ao povo. No domínio tridimensional temos um Pomar em procura incessante na escultura e na assemblage (colagens ou incorporações na obra de objetos e materiais tridimensionais).
Considerado por todos como um homem de grande cultura, Pomar dominava a escrita com mestria reconhecida. António Lobo Antunes era grande admirador da sua escrita, Pedro Tamen defendia ser preciso pensar em Pomar como “um artista de palavra “ e José Augusto França considerou o seu livro “A cegueira dos pintores” como a melhor obra portuguesa sobre a arte da pintura escrita por um artista. A escrita representou assim uma parte significativa da vida de Pomar e com um início prematuro. Tinha apenas 19 anos quando dirigiu uma página de Arte no jornal portuense “A Tarde” além de ter colaborado em outros periódicos como a Seara Nova, Vértice ou Horizonte.
Ainda não tinha completado 20 anos quando o arquitecto encarregue da concepção do Cine-Teatro Batalha no Porto o indicou para realizar uma obra de fôlego: um grande mural com mais de 100m2 que acompanha a escadaria. Lamentavelmente poucos anos depois seria pintado pela PIDE em consequência das posições políticas de Pomar e nem o facto do tema representado ser inócuo (inspirava-se nas festas do São João do Porto), fora suficiente para poupar a obra à ira do regime. Só recentemente, e após 3 anos do restauro do edifício, os frescos voltaram a ser exibidos.
Mas, não obstante o profundo mal estar que Júlio Pomar causava junto das autoridades políticas, recebeu muito cedo o reconhecimento dos seus pares incluindo os mais velhos e já consagrados. Prova desse facto, foi ter sido um dos principais organizadores e participante das Exposições Gerais de Artes Plásticas realizadas na Sociedade Nacional de Belas Artes entre 1946 e 1956. Em 1947, expõe individualmente pela primeira vez na Galeria Portugália no Porto, mas é preso pela PIDE durante 4 meses, por pertencer à direção do MUD juvenil. Em 1949 é afastado do lugar de professor de desenho no ensino técnico após ter desenhado o candidato presidencial Norton de Matos a quem foi apresentado pelo seu amigo Mário Soares. O castigo acabaria por ser considerado por Pomar como bastante benéfico porque dessa forma “desabituei-me do “x” certo ao final do mês”.
A sua obra passará por ciclos bem conhecidos por todos e absolutamente identificáveis e distintos, mas tudo começa com o neo-realismo que marca de forma profunda o seu trajecto até 1953 altura em que se dá o seu afastamento. Data desta primeira fase a pintura “O Gadanheiro”, de poderosa anatomia numa clara afirmação temática e assumidamente hoje visto como o primeiro quadro importante do neo-realismo português, movimento este que surge tardiamente em Portugal pelas mãos de uma geração muito jovem imbuída de intervenção crítica e afirmação política. Apesar de Pomar ser o mais novo desta colmeia de artistas, acabaria por ser, de longe, o que melhor representou o espírito desta arte de protesto, provavelmente porque Pomar acreditava que os artistas tinham uma responsabilidade social convicção que surge clara e inequívoca nos textos que foi publicando desde 1945. O historiador de arte José Augusto França considerou Pomar o “pintor mais imediatamente talentoso da sua geração e o mais brilhante dos cultores do neorrealismo de 45”. Um jovem artista que defendia uma arte popular, esclarecedora e construtiva, uma arte do povo, pelo povo e para o povo. O quadro “O Almoço do Trolha é talvez o maior exemplo desta doutrina. Cumprindo uma gramática pictórica sombria, cinzenta e rude, que acentua a pobreza sufocada num silêncio pesado (e Pomar valorizava os silêncios reconhecendo a sua necessidade e beleza), a composição das figuras insere-se num cenário de trabalho, confinado e despojado de conforto, intimidade e esperança que torna a obra num quadro intenso e brutal onde se pressente a influência de Almada Negreiros e que nos orienta para uma mensagem social clara. Será exposto pela primeira vez em 1947, mas surge inacabado porque Pomar estava preso.
Entre o Almoço do Trolha (1946) e o Ciclo do Arroz (1953) Pomar passará por uma fase mais geometrizada além de, entre 1948 e 1949, ter começado a desenvolver experiências artísticas em escultura, cerâmica e com cartões para tapeçaria numa incursão pelas artes decorativas. Na altura, é publicado um álbum com 16 dos seus desenhos com prefácio de Mário Dionísio.
Em 1957 apresenta o seu quadro “Maria da Fonte”, onde é visível a influência de Columbano e Goya (Pomar deslocara-se anteriormente a Espanha onde estudara o pintor espanhol). A obra anuncia claramente uma viragem estética consolidando o seu afastamento do neo-realismo, uma cisão que Pomar desvalorizaria explicando que, tal como entrara no movimento também dele tinha saído. Importa lembrar que já desde 1952 a corrente artística entrara em crise.
Em Junho de 1963 fixa residência em Paris onde estuda entre 1964 e 1967 como bolseiro da Fundação Gulbenkian ao mesmo tempo que se afasta de uma militância cívica que havia marcado a fase inicial do seu percurso. Irá regressar a Portugal nos anos seguintes de forma irregular e 20 anos mais tarde acabará por adquirir casa em Lisboa para aí instalar um segundo ateliê. Pomar considerará fundamental ter duas casas e dois ateliês porque desta forma conseguia afastar-se das obras em curso quando necessitava desse distanciamento, apesar de doloroso, para as poder olhar de novo, quando a elas regressava decorrido algum tempo, com um espírito mais crítico “para muitos artistas isso é um horror, para mim é importante termos uma visão crítica” defendia em entrevista em 2005.
Sobre o processo de criação Pomar confessava em entrevista dada à jornalista Ana Sousa Dias em 2001 que sofria “como um danado para fazer qualquer coisa, qualquer coisa que eu próprio não sei muito bem o que é” porque Pomar buscava incessantemente o que para ele era um objectivo na sua arte, como já havia explicado anos antes “Gostaria que a minha pintura fosse para as pessoas o encontro de uma situação, que representasse uma surpresa que as levasse a olharem-se para si mesmas para o que as rodeia e mais do que terem certezas levantassem dúvidas, colocassem as coisas em discussão e a admitirem o que é diferente”.
Do neo-realismo a sua pintura evoluiu numa reinvenção constante e marcada por rupturas e regressos, experiências, desencantos e descobertas porque Pomar nunca se fixou numa fase, num plano narrativo, numa só perspectiva. Depois da Maria da Fonte (1957) encarada como obra de charneira, a sua pintura iniciou um percurso mais livre e gestual. Abandona o formalismo naturalista dos neorrealistas e apaixona-se por D. Quixote que o leva a experiências gestualistas. Produz um ciclo de obras dedicado à figura literária a que se segue o ciclo da tauromaquia e das corridas de cavalos onde a diluição das formas nos conduz a uma umbilical ligação com uma energia vital. É através do desenho que se tecerá um estreito diálogo com a literatura e Pomar ilustrará grandes obras como a Mensagem, de Pessoa ou a Guerra e Paz de Tolstói. Os anos 60 trazem a Pomar descontentamento com a sua obra o que leva à destruição de boa parte das telas. Havia qualquer coisa que lhe faltava, que não se cumpria até que numa altura em que se encontrava no Algarve descobre as colagens alterando a sua linguagem pictórica.
Todos os ciclos artísticos em que a obra de Pomar se desenvolve resultam de explorações temáticas num eterno e permanente movimento. Um movimento que está presente em toda a sua pintura com grande representação dos animais até porque quem melhor que eles para acompanhar a dinâmica dos quadros de Pomar? Os ciclos nascem a partir de uma experiência, seja ela visual ou literária e a ideia impulsionadora de cada conjunto “é trabalhada e retrabalhada até ao seu esgotamento […]. O resultado é uma obra que funciona como um palimpsesto que regista a sua própria arqueologia“, como diz Ruth Rosengarten.
Recuperando a nossa menção sobre a presença dos animais na obra de Júlio Pomar, podemos dizer que a lista das espécies retratadas é imensa: porco, macaco, tigre, corvo, elefante, girafa, veado, tartaruga, touro, gato, cavalo, cão, lobo, cabra e o bode, gaivota, mosca e burro o que nos elucida sobre a força inspiradora do reino animal.
Depois das Tauromaquias entre 1960 e 1966 que surgem, como refere Alexandre Pomar, “com a diversidade dos seus vários tópicos temáticos, como uma série mais emblemática” até às corridas de cavalos já pintadas em Paris, para onde Pomar se muda em 1963, podemos identificar “a leitura de uma problemática do movimento, diferenciado nas duas séries, onde a arquitectura tensional das forças em combate, primeiro e depois a velocidade contínua, coincidem no jogo pictural.” (idem)
Entre 1978 e 1982, os tigres tomam o protagonismo devido ao convite de Joaquim Vital para ilustrar a edição traduzida Tigres Azules, de Jorge Luís Borges. Na década de 1980, apareceram os corvos, animal com forte carga simbólica na cidade de Lisboa.
A década seguinte vê chegar as pinturas e serigrafias dos quatro macacos a realizar atividades humanas como cozinhar. Obras consideradas como auto-retratos irónicos ao mesmo tempo que satirizam as rotinas diárias que ocupam os humanos revelam o humor sarcástico de Pomar. No verão de 1992, o artista iniciou a série “L’Année du Cochon” (O Ano do Porco). Sobre a qual diria “Vários acontecimentos se sobrepuseram. Primeiro, a minha velha atração pelo bicho… Nessa época, eu fumava dois ou três maços por dia e deu-me para enfeitar as minhas personagens mitológicas com cigarros, que lhes punha entre os dedos ou ao canto da boca. Assim, tive que fazer entrar Os Malefícios do Tabaco no Ano do Porco.”
Outros exemplos de obras com animais são as tapeçarias para a sede da Caixa Geral de Depósitos com cavalos, as águias para o centenário do Benfica, os gatos, carneiros e javalis nas ilustrações de D. Quixote. Os animais seriam assim uma presença constante na obra de Pomar ao longo de seis décadas, até aos burros que tocam viola de 2010.
Por fim uma inevitável referência ao retrato que tanto significado tinha para Pomar e que o acompanhou ao longo de todo o seu trajecto. Em 2020, no seu ateliê já transformado em museu, foi inaugurada uma exposição que mostrava os retratos e auto-retratos de 1940 a 2017. O título era sugestivo: “O desenho impreciso de cada rosto humano, refletido! Retratos de Júlio Pomar.” Conforme se pode ler no texto que acompanha a mostra que teve curadoria de Sara Antónia Matos e Pedro Faro:
“O retrato na obra de J.P. é, do princípio ao fim, uma prática relacional: desde os colegas dos 1ºs anos, os amigos, os escritores, as mulheres, até às últimas pinturas-retratos do seu círculo de relações em Lisboa (…) as pessoas são o real mais próximo, e por isso mais acessível à observação, incluindo o auto-retrato.”
Pomar era um homem que gostava de rir e era dono de um sentido de humor que o sorriso traquina com que terminava muitas frases evidenciava, um homem permanentemente insatisfeito e em busca. E essa procura constante era o seu gatilho da vida. Sem se fixar num registo, numa narrativa, num estilo, Pomar foi o homem de muitas faces/fases porque a vida, que ele observava com paixão e com o tempo que relógio algum ditava, era múltipla. Os índios da Amazónia ou o rosto de um amigo, fosse ele Presidente da República, escritor conhecido ou simples anónimo, a tauromaquia ou o delírio belo de D. Quixote, as mulheres ou Pessoa…de tudo e de quase nada se alimentava a obra e o sonho de Pomar.
Paula Timóteo