Almada de Negreiros I O legítimo descobridor da novidade

A arte, na sua concretização enquanto objecto perceptível, tem sido ao longo da história da humanidade “(…) a expressão de uma vontade ou aspiração criativa e tem constituído uma parte notável do ambiente material da vida” como nos diz Argan no seu livro Arte e Crítica de Arte onde o autor também expressa a preocupação com a possibilidade de um futuro sem arte, como muitos vaticinam. Não seria apenas a produção de novas obras que estaria comprometida, caso tal viesse a acontecer, mas a degradação e destruição do património existente e, nesse caso e retomando uma vez mais a voz de Argan, a sociedade estaria a renunciar à sua própria História, uma História que a Arte espelha desconhecendo o quanto a historiografia dela se serve, na leitura interpretativa das obras, sejam elas pinturas, esculturas ou edificados, para um conhecimento mais fundamentado de uma época.

A abordagem da História através da arte feita em cada época convencionalmente definida, enriquece o processo científico historiográfico na medida em que o alarga até aos aparentemente não protagonistas do devir histórico, mas, ainda assim, agentes actuantes e espectadores privilegiados do seu tempo

Este mês passam 55 anos da morte de José Sobral de Almada Negreiros, artista total e irreverente, espelho da época e motor de mudança. Nascido em São Tomé e Príncipe em 1893, viveu uma das épocas mais marcantes da História portuguesa e esse aspecto também se reflectiu na sua obra. Não apenas no cumprimento de encomendas de regime, mas também nas personagens que escolheu como protagonistas, como é caso emblemático e cimeiro os painéis das gares marítimas de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos.

Almada de Negreiros assistirá ao fim da monarquia, ao derrube da 1ª República e ao nascimento da ditadura que ele irá acompanhar até ao dia da sua morte, a 15 de Junho de 1970. E desde muito cedo irá revelar uma prodigiosa versatilidade. Em 1911 estreia-se como desenhador humorista e nos dois anos seguintes participará nos I e II Salões dos Humoristas Portugueses. Em 1913 realiza os seus primeiros óleos, para a Alfaiataria Cunha, e acontece a sua primeira exposição individual. Em Março de 1914 publica o seu primeiro poema e, no ano seguinte, será um dos fundadores da revista literária Orpheu tendo também ilustrado o número espécimen da revista Contemporânea

Capa do 1º número da revista Orpheu, 1915

Ao longo da sua vida, Almada viverá várias “vidas” artísticas, mas sempre com mesmo olhar vanguardista. Apesar da sua paixão pela escrita, circulando entre a poesia, romance, ensaio ou dramaturgia, Almada vai encontrar nas artes plásticas, com especial relevo nas artes decorativas, um percurso artístico de expressão singular ocupando uma posição central na primeira geração de modernistas portugueses.

Figura singular no panorama artístico português do século XX, Almada foi de facto excepcional a começar pelo facto de ter sido um autodidacta, nunca tendo chegado a frequentar nenhuma escola de ensino artístico, e ter, desde muito jovem, revelado a sua genialidade no desenho humorístico. Segundo José Augusto França, dele fica sobretudo a imagem de um “português sem mestre” e, infelizmente, “sem discípulos“.

Com um papel particularmente activo na primeira vanguarda modernista, Almada contribuiu de forma determinante para que a Revista Orpheu não se limitasse ao universo literário. Para Almada, era impensável diferenciar universos criativos porque ele movimentava-se em vários planos e dominava com a mesma intensidade e entrega variantes artísticas diversas dividindo-se entre a escrita interventiva e literária, a semântica das artes plásticas ou até o movimento que o bailado oferecia.  Almada, que se veio a revelar como o mais completo global e diverso de todos os modernistas, era de temperamento aguerrido e polémico e por isso não é de estranhar que tenha mergulhado activamente no movimento futurista em Portugal desde 1917 – ano da 1.ª Conferência Futurista e de Portugal Futurista. Assume esse caminho na boa companhia de Santa Rita Pintor numa clara provocação e declaração de modernidade em oposição ao passado e a uma forma de fazer arte que José Malhoa, de forma inequívoca, protagonizava.

Um pouco fora do estereótipo do artista de então, Almada viverá pouco mais de 1 ano em Paris (1919-1920) numa altura em que muitos já lá tinham estado e após a morte dos amigos e companheiros da modernidade, Amadeo e Santa Rita. Ali viverá uma fase da vida que será sentida como um tempo de desencontros: “Procurei os artistas avançados. Fiquei amigo de vários, mas […] não apareceu nunca o motivo que juntasse no mesmo ideal a minha arte e a de cada um deles“. Mas não nos iludamos. A estadia em Paris não representou um primeiro e inicial contacto e descoberta com o que se passava no coração cultural e científico da Europa, destino obrigatório de várias gerações de artistas, escritores, cientistas e políticos portugueses. Antes dessa curta estadia já Almada sabia bem o que se passava em Paris. Os textos que inseriu no “Portugal Futurista” refletem o domínio que já possuía da cultura europeia contemporânea. A 16 de novembro de 1917, em “A Engomadeira”, Almada Negreiros afirmou, ao concluir a dedicatória a José Pacheko, numa carta prefácio:

“Escuso de repetir-me neste assunto que o nosso Mário de Sá-Carneiro sabia tão justamente classificar:

— Nós três somos de Paris!

E somos. Temos esta elegância, esta devoção, este farol da Fé”.

Por isso, ainda antes da viagem a Paris, José de Almada Negreiros já se sentia em sintonia com a cultura francesa.

O desejo de respirar a atmosfera vanguardista parisiense está muito clara na correspondência de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa nos anos de 1914, 1915 e 1916, onde são referidos projetos de viagens de Almada a Paris que queria viver por dentro a viragem introduzida no desenho, na pintura, na escultura, na literatura, no teatro, na dança, no bailado e em outras áreas. Uma viragem com muitos protagonistas vindos um pouco de todo o lado como era o caso do espanhol Picasso, do escultor romeno Brancusi, do italiano Modigliani, do bielorusso Chagall, do escritor italiano Apollinaire ou do romancista e poeta suíço Blaise Cendrars.

Numa carta a Pessoa, Sá-Carneiro confessava:

“Seria muito agradável ver aqui Almada, quanto mais não fosse para fazer escândalo nos cafés”. E Pessoa, por seu turno, dizia de Almada que ele era um “homem de génio. Ele é mais novo do que os outros, não só em idade como também em espontaneidade e efervescência. Possui uma personalidade muito distinta — para admirar é que a tivesse adquirido tão cedo”.

E de que forma Almada conseguiu ter um conhecimento tão palpável sobre Paris antes de lá ter vivido? Bom, entre 1915 e 1917 tinham-se instalado em Portugal, Sonia e Robert Delaunay, fugidos da Guerra que grassava na Europa. A eles se juntariam o pintor russo Daniel Rossiné, o pintor americano Samuel Halpert além dos portugueses Amadeo de Souza-Cardoso (ver o número da revista de novembro de 2024), Eduardo Viana e o próprio Almada. O resultado foi um grupo heterógeno na assinatura estética, mas unido na paixão pela arte, no compromisso em desbravar caminhos e romper com passividades culturais. Este seria um grupo onde, a par de projectos que nunca se concretizariam, como exposições em Barcelona e Estocolmo, houve sobretudo muita produção de pensamento e experiências e um convívio cultural em torno das estéticas da vanguarda.

Ainda em 1916, Almada publica o manifesto de apoio à I Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, em Lisboa, tornando-se num dos primeiros defensores da sua obra em território nacional.

A relação pessoal que, entretanto, Almada estabeleceria em Lisboa, com Serguei Diaguilev e Massine, coreógrafo e bailarino, quando a companhia dos Bailados Russos se deslocou a Portugal, em fins de 1917 e princípios de 1918, intensificou a amplitude do seu conhecimento fora das portas limitadas do seu país. Por isso podemos dizer que o contacto com os Delaunay e a vinda dos Bailados Russos a Portugal, proporcionaram o conhecimento do universo de Paris ainda antes de Almada lá ter estado e os textos que inseriu no “Portugal Futurista” refletem exactamente o domínio que possuía da cultura europeia contemporânea.

Já em Paris, onde vive de Janeiro de 1919 a Abril de 1920, Almada, que ao contrário de muitos não beneficiou nem de bolsa nem dos recursos de uma família rica, trabalhará no que foi necessário para sobreviver e tanto foi dançarino de salão como empregado de armazém, mas nunca deixou de desenhar e escrever. E é precisamente desta época o poema em prosa Histoire du Portugal par Coeur (publicado mais tarde na Revista Contemporânea), onde revela uma consciência nacional que se irá reflectir na sua obra. Terá este caminho estético sido impulsionado por uma certa desilusão que Paris lhe tenha, eventualmente, suscitado? Bom, mas Paris, nem que seja por essa possível desilusão, acabará por representar um ponto de mudança e nem tão pouco podemos dizer que Paris não tenha acrescentado muito a Almada que manteve contactos enriquecedores com artistas e intelectuais da vanguarda artística europeia.

A partir da década de 1920, torna-se evidente a influência de Picasso. Inicialmente a aproximação evidencia-se nas suas figuras femininas maciças e nos arlequins, depois na utilização frequente de deformações e deslocações anatómicas e, finalmente, a assimilação do cubismo.

S/ título 1918

Será precisamente ao longo da década de 1920 que surgirão várias encomendas. Em 1925 o café Brasileira do Chiado é remodelado e, por iniciativa do jornalista Norberto de Araújo, do Diário de Lisboa, e do arquitecto José Pacheco, director da revista Contemporânea, a sua decoração é entregue aos modernistas Eduardo Viana, António Soares, Jorge Barradas, Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, José Pacheco e José de Almada Negreiros tornando o café na única «galeria» modernista então possível na capital portuguesa. Almada pintará Autorretrato num grupo que representa um testemunho, vivido na 1ª pessoa, de uma época marcada por cenáculos intelectuais e As Banhistas, uma obra onde sentimos uma clara influência de Picasso, que nos apresenta duas mulheres sentadas na praia com os modernos, e para muitos escandalosos, fatos de banho femininos de calção curto.

Autorretrato num grupo, 1925

As Banhistas, 1925

Na execução da encomenda para o Bristol Club, também no âmbito de uma remodelação realizada em 1926, a opção de Almada será a de um quase simples desenho, apenas levemente colorido, onde o artista representa uma mulher nua, de corpo esguio e cabelo curto cortado à garçonne, olhando-se num pequeno espelho.

De 1927 a 1932, encontramos Almada em Madrid e ali participará nos encontros intelectuais do Café Pombo e, sobretudo, viverá num meio artístico em efervescência. Em 1927, na conferência O Desenho que decorreuna capital espanhola,ele definirá um modernista:”Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir, mas sim uma maneira de ser. Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade.”  

Quando regressa a Portugal, Almada fá-lo na convicção de um retorno definitivo. No mesmo ano também Mário Eloy chega a Portugal e os dois estabelecem um contacto que terá tido repercussão na alteração no uso da cor na pintura de Almada.  A relação com Sarah Afonso (que culminará em casamento) produzirá igualmente um impulso expressivo na sua obra. O Duplo Retrato do casal de 1934 e Maternidade (1935), que celebra o nascimento do filho José, são reveladores de uma maturidade cromática que reflecte o efeito produzido pela proximidade com Eloy e Sarah.  

Duplo Retrato, 1934

Maternidade, 1935

Ainda em 1934, realiza os primeiros estudos para os vitrais da Igreja de Nossa Senhora de Fátima dando início a uma estreita colaboração com o arquitecto Pardal Monteiro que terá continuidade em outros projetos, como a decoração de interiores e elementos artísticos para edifícios com o seu auge nas gares marítimas de que falaremos a seguir.

Vitral da Igreja de Nossa Senhora de Fátima

É tarefa impossível a de definir e entender em pleno Almada e talvez seja errado tentar sequer fazê-lo porque Almada de Negreiros foi um artista multifacetado, insaciável no uso das vozes diversas que diferentemente ele usava para dar forma e eco ao que desejava criar. Ao longo da sua vida, o desenho e pintura, ensaio, romance, poesia, dramaturgia e até o bailado, foram os seus idiomas sem nunca se fixar num domínio único e preciso fazendo de Almada a imagem do artista total, inclassificável. Também neste aspecto Almada se diferenciou dos seus pares mais notáveis, nomeadamente Amadeo de Souza-Cardoso, na pintura, e Fernando Pessoa na poesia, cuja concentração numa única voz artística, foi condição necessária à realização das obras máximas que nos deixaram como legado.

Almada é também um caso interessante pelo facto de, numa fase inicial do Estado Novo, a sua genialidade ter estado, em parte, ao serviço da propaganda do regime o que para muitos é um forte indício da sua aproximação ideológica com Salazar. Dele são algumas das imagens mais icónicas da gramática propagandística como o cartaz promocional do plebiscito da Constituição de 1933, ou a imagem de Salazar com o lema Tudo Pela Nação (1935). Apesar da sua rejeição a uma subordinação da Arte à política, Almada criou algumas das imagens mais representativas do Estado Novo e que hoje ajudam na leitura da mensagem explícita e oculta da política de Salazar.

Assumidamente monárquico, Almada acaba por nos desconcertar porque nele confluía um conservadorismo ideológico em simultâneo com a provocação de um vanguardista, um modernista que soube honrar a longevidade que os jovens Amadeu e Santa Rita dela não beneficiaram. Exemplo claro da sua irreverência foi o seu manifesto Manifesto Anti-Dantas e por extenso. Estávamos ainda em 1915 e o 2º número da revista Orpheu tinha sido alvo de críticas muito severas nomeadamente pelo médico, escritor e político Júlio Dantas. E é precisamente na sequência dessa feroz reação que Almada se dirige a Dantas personificando neste, toda uma geração de individualidades com prestígio social e cultural que se mantinham avessas a rupturas alimentando o passadismo. Tinha acabado de estrear uma peça de Júlio Dantas e Almada lança este texto que vale a pena lembrar um pequeno excerto:

BASTA PUM BASTA! UMA GERAÇÃO, QUE CONSENTE DEIXAR-SE REPRESENTAR POR UM DANTAS É UMA GERAÇÃO QUE NUNCA O FOI! É UM COIO D’INDIGENTES, D’INDIGNOS E DE CEGOS! É UMA RÊSMA DE CHARLATÃES E DE VENDIDOS, E SÓ PODE PARIR ABAIXO DE ZERO! ABAIXO A GERAÇÃO! MORRA O DANTAS, MORRA! PIM!

Curiosamente, Almada assina o texto como José de Almada-Negreiros POETA D’ORPHEU FUTURISTA e TUDO. E é precisamente este “tudo” em maiúsculas que pode ser considerado um esboço da sua definição.

Ao contrário do que aconteceu com os companheiros vanguardistas, Amadeo e Santa Rita, que morreram precocemente, com Almada conseguimos conhecer uma fase mais madura da sua obra, Eduardo Lourenço escreveria a propósito desta fase considerada mais lírica: “Estranho arco de vida e arte o que une Almada «Futurista e tudo», Narciso do Egipto da provocante juventude, ao mago hermético certo de ter encontrado nos anos 40, «a chave» de si e do mundo no «número imanente do universo»“.

Na década de 1940, os murais para as gares marítimas projetadas por Pardal Monteiro, são, no campo pictórico e simbólico, a sua obra cimeira. Almada, ele próprio, subirá aos andaimes para concretizar a pintura de oito painéis na gare de Alcântara (terminados em 1945) e seis na Rocha do Conde de Óbidos (concluídos em 1949).

Numa gramática estética alimentada pelo cubismo e pelas artes gráficas, os painéis representam a maior obra mural portuguesa do século XX, mas tão importante quanto a sua qualidade artística é o que ela representa, a(s) história(s) contadas e o murro dado à política do gosto da época.

O objectivo da encomenda era claro: apresentar um cartão de boas-vindas a quem chegava a Portugal pela porta grande: a capital. Pretendia-se assim mostrar um país em glória de si próprio. Estávamos em pleno Estado Novo e Portugal vivia uma conjuntura económica muito favorável fruto da sua não participação na 2ª Guerra ao mesmo tempo que tinha beneficiado dos lucros obtidos pelo volfrâmio, e do investimento em obras públicas que se assistia na época. Em 1933 tinha sido criado o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) cujo objectivo era claríssimo: criar um vasto programa de divulgação e exaltação do Estado Novo, recorrendo a uma linguagem modernista sempre ao serviço do ideário conservador. A História passaria a ser recontada mitificando-a e a excepcionalidade nacional estava presente em todas as oportunidades. As gares marítimas deveriam espelhar exactamente isto e não mais do que isto. Almada irá cumprir alguns requisitos esperados pelas autoridades políticas: a linguagem modernista, a grandiosidade da obra, a qualidade excepcional dos murais (ainda assim colocada em causa por quadros do regime), mas Almada vai também retratar o que o Estado Novo preferia não apresentar como cartão de visita aos que acabavam de chegar à capital do Império e que pertenciam às elites que viajavam em 1ª classe porque não estamos, obviamente, a falar dos emigrantes obrigados pela miséria a partir e que, aliás, se encontram representados num dos painéis. Almada irá contar a história de uma Lisboa de varinas e saltimbancos, carvoeiros e pescadores, pedintes e operários em estaleiros. É o povo, o povo pulsante da cidade, aquele que faz os lugares, que povoa e anima ruelas e avenidas com os pregões gritados, com as conversas de janela, com o ruidoso fluir de uma cidade trabalhadora e pobre. Pobre e miserável apesar do esplendor do vasto império, apesar da grandeza das obras, apesar dos cofres estatais bem forrados de ouro.

Na gare de Alcântara, Almada não esquece o passado, que o Estado Novo tanto gosta de evocar. Nestes painéis é lembrado o passado mítico (numa interpretação do poema popular Nau Catrineta e da Lenda da Nazaré e de D. Fuas Roupinho), mas o desagrado das entidades oficiais foi de tal forma que colocou em causa a continuidade da encomenda. Duarte Pacheco terá vociferado que as pinturas eram “uns mamarrachos”. Valeram as intervenções de António Ferro, director do SPN, do arquitecto Pardal Monteiro e de João Couto, o director do Museu Nacional de Arte Antiga, que defenderam a qualidade da obra, para que Almada pudesse avançar. E na execução da 2ª parte da encomenda (os painéis da gare da Rocha Conde de Óbidos) o resultado foi ainda mais estrondoso. Almada não se deixou intimidar, muito menos limitar no seu processo criativo e por isso chegou a ser posteriormente equacionada a destruição destes últimos painéis. E porquê estes? Porque enquanto em Alcântara há ainda a evocação da História de Portugal no último conjunto Almada dá largas à sua irreverência e o protagonismo vai ser dado aos que sofrem, aos que têm de partir para fugir à miséria, aos saltimbancos que pedem esmola.

Sobre o conjunto mural, Almada diria, em 1953, que via os murais “Como um estranho” acrescentando que se os podia ver devia esse facto “ao parecer que evitou que os últimos fossem picados na Rocha do Conde de Óbidos. Creio não haver cumprido melhor, nem feito obra que fosse mais minha.” Almada aludia claramente às críticas por motivos ideológicos afirmando com veemência que para ele aquela era a sua obra-prima.  

Domingo Lisboeta, painel na gare da Rocha do Conde de Óbidos, 1949

Partida de emigrantes, painel na gare da Rocha do Conde de Óbidos, 1949

O facto de ter participado em obras públicas e exposições promovidas pelo Estado Novo, não fez de Almada um artista do regime. Ele aceitava encomendas que lhe permitiam, a ele e à família, sobreviver ao mesmo tempo que o trabalho realizado era uma oportunidade para chegar a um público mais vasto sulcando o caminho da modernidade e, quem sabe, exercendo um papel na educação artística dos portugueses.

Em 1964, por encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian, Almada Negreiros realiza uma réplica do Retrato de Fernando Pessoa, que havia executado em 1954 para o restaurante Irmãos Unidos, frequentado por Almada e outros nomes ligados à célebre revista modernista, Orpheu.

Retrato de Fernando Pessoa, 1964

Como em tantas outras obras de Almada, revisitadas ou recriadas por ele, como é disso exemplo o Auto-Retrato de 1950, conservado no CAM, réplica de outro datado de 1919, de Paris – não se trata de uma réplica exacta. Este novo Retrato de Fernando Pessoa (poeta que Almada desenhara em 1935), apresenta-se, em relação à obra de 1954, como que espelhado.

Almada Negreiros manteve a sua actividade até ao fim da vida sendo uma das últimas obras mais significativas o painel “Começar” (1968), que se encontra no átrio da Fundação Calouste Gulbenkian. Trata-se de uma obra que resulta de estudos sobre o número e a geometria a que Almada se havia dedicado desde a década de 40. Os frescos “Verão” que podem ser vistos na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra também são uma das derradeiras obras de Almada. Ambos os trabalhos marcam o fim da produção artística de Almada.

Ferreira Gullar, escritor, jornalista e poeta brasileiro defende que a arte existe porque a vida não basta, é pouca, não nos satisfaz. Para ele a arte existe para criar o que não existia antes. Se há artista que incorporou em pleno esta ideia, esse artista foi Almada.

Paula Timóteo

Paula Timóteo

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