Sabemos que, ao longo dos séculos, a pintura e a escultura foram-se libertando do seu papel de documentar, catequizar, narrar, fixar para a eternidade possível, acontecimentos, momentos, lugares e pessoas. Com o surgimento da fotografia e do cinema ainda no século XIX, a arte emancipou-se de compromissos exógenos ao impulso criador.
O acto criativo passou a ser, mais do que nunca, um exercício feito por alguém que se dirige ao outro. Um “outro” que observará uma obra que passou a ser o resultado de um encrencado sistema dialéctico entre o emocional e o entendimento. Lembrando Kant, sabemos que a sensibilidade dá-nos a conhecer o que o entendimento nos ajudará a compreender e é pela sensibilidade que o artista recebe a realidade e os contextos em que se encontra para posteriormente, pelo entendimento, os converter em parte de si e inevitavelmente os traduzir numa narrativa estética pessoal. O artista é a soma de todas as importações sensoriais e concretas que vai recebendo ao longo da sua vida e a sua arte não pode deixar de ser vista a essa luz.
Martins Correia, escultor, pintor, poeta, foi um artista de olhar apaixonado pela vida e pelos mundos que um Portugal de múltiplas cores lhe oferecia e alguém que absorveu o “seu” Ribatejo como matéria poética da sua obra.
Quando o Mestre Martins Correia, como ficou conhecido, nasceu a 7 de Fevereiro de 1910 na Golegã, Portugal vivia os últimos capítulos da sua monarquia secular e em breve se afundaria numa fase de complexa e tumultuada mudança política a que se somou o desaire da participação na Grande Guerra e a tragédia da pneumónica. Os movimentos artísticos da 1ª geração da vanguarda modernista estavam ao rubro com os ventos de mudança que sopravam de Paris e que aqui também se consumavam, mas a pandemia de 1918, conhecida erradamente como a gripe espanhola, iria dizimar vidas, ceifar futuros promissores, mas também definir destinos como aconteceu com Martins Correia que viveu a orfandade muito cedo.
Em novembro de 1922, aquele que viria a ser um Mestre nas Artes Plásticas e com especial destaque na escultura, entra na Casa Pia vindo a ser um dos casapianos mais notáveis que esta instituição teve mantendo com esta Casa uma ligação que duraria a vida inteira. O director do Centro Cultural Casapiano, João Louro, aquando de uma exposição do artista sob o lema “Poema de Contornos”, realizada em 2020 a propósito dos 240 anos da instituição, disse, em declarações à Lusa “(Martins Correia) personifica muito bem o que a Casa Pia sempre fez: dar oportunidades aos que, pelas circunstâncias da vida, tiveram inúmeras adversidades. É o paradigma de um homem que cresceu na Casa Pia de Lisboa, aproveitou o que de melhor a Casa Pia lhe deu e foi sempre de uma enorme gratidão”.
Várias viriam a ser as obras doadas por Martins Correia à Casa Pia, o que tem um significado maior quando sabemos o quanto lhe custava separar-se das suas criações. Entre as obras doadas encontra-se um busto em bronze e pedra da Rainha Santa Isabel, padroeira da instituição.
Desde cedo as artes plásticas tomaram pela mão a alma do jovem artista iniciando um longo caminho de felicidade e revelação. A arte foi o seu amplo horizonte de liberdade e cor, parceira de vida e sua cúmplice na compreensão do mundo. Na Casa Pia, concluiria o curso industrial e de seguida, através de uma bolsa de estudo, integraria a Escola de Belas Artes de Lisboa onde se matriculou em 1928 e se formaria em escultura. Ainda enquanto estudante, exerceu na Casa Pia as funções de professor auxiliar dos professores de desenho que ali lecionavam. Viriam então largos anos de docência no Ensino Técnico Profissional na escola Rafael Bordalo Pinheiro, nas Caldas da Rainha e, em Lisboa, nas escolas Marquês de Pombal, Machado Castro, Afonso Domingos e António Arroio.
Em 1938 faz a sua primeira exposição e dois anos mais tarde já os seus trabalhos mereciam destaque tendo participado na Exposição do Mundo Português bem como nos salões da Sociedade Nacional de Belas Artes.
Nos anos de 1944 e 1945 vamos encontrar o Mestre em Espanha e Itália para onde viajou com uma bolsa do Estado português e em 1957 recebe o prémio Mestre Luciano Freire, da Academia Nacional de Belas Artes no âmbito de uma exposição individual que decorreu na Galeria do Diário de Notícias.
Ao longo da vida, o Mestre Martins Correia irá desenvolver uma obra vasta que se encontra dispersa em coleções públicas e particulares, dentro e fora de Portugal, embora confessasse que não gostava de vender a sua obra como surge citado no artigo “Martins Correia – um escultor com o condão da poesia”: “Sempre me custou muito vender as coisas, por isso é que tenho assim tanta coisa acumulada” e a sua casa/ ateliê era bem o reflexo do que afirmava. Há aliás um episódio que ilustra a sua ligação umbilical ao que fazia. Em 1991, aquando da IV Bienal de escultura e desenho das Caldas Rainha, Martins Correia foi surpreendido pela existência de um busto que ele fizera para o museu em 1942 e que há décadas não via: “O Fogueteiro”. A reação do mestre nesse reencontro foi de grande emoção tendo, inclusive, se agarrado à escultura e chorado como de um abraço a um filho perdido se tratasse.
O seu trabalho assumirá um especial destaque na escultura somando diversas estátuas e bustos nomeadamente o de Luís de Camões, em Goa, de Frei Bartolomeu de Gusmão, em Tóquio bem como obras de maior volumetria como a de Amato Lusitano, em Castelo Branco, as que se encontram em frente da Biblioteca Nacional em Lisboa ou as que podemos encontrar no Tribunal de Leiria, além da passarola do aeroporto de Lisboa. No Brasil, Martins Correia encontra-se representado com a estátua “Nó do Mar”, no Rio de Janeiro, que evoca os laços que unem os dois povos.
Mas além da escultura, Martins Correia dedicou-se também à pintura, ao desenho, à serigrafia. Na azulejaria também tem trabalho notável tendo, já com 84 anos, realizado dois grandes projectos para painéis de azulejos em Lisboa: um que podemos ver na estação do Metropolitano de Lisboa em “Picoas” coincidindo com a conclusão, em Abril de 1995, da remodelação completa da estação, e um outro que se encontra na Torre Vasco da Gama, no Parque das Nações, o tríptico: “A Partida”, “A Aventura e “A Chegada”. No primeiro caso reconhece-se o claro compromisso com a homenagem que o artista pretendeu fazer às mulheres de Lisboa. Os painéis surpreendem-nos com os seus vultos negros estilizados numa verticalidade carregada de dignidade. Neles, as cores fortes contrastantes, que são a assinatura de Martins Correia, dizem-nos muito de uma identidade e cultura rica de vivências, sabores e aromas. São figuras típicas da cidade, como vendedoras e peixeiras com as suas canastras, que se olham e nos olham em silêncio e com seriedade. A obra inclui ainda elementos simbólicos da cidade, como a heráldica de Lisboa, com a barca e os corvos, bem como colunas romanas em plena concordância plástica com o entendimento conceptual que vigorou ao longo da vida artística do mestre.
Na parede do seu ateliê, Martins Correia desenhou um dia uma das frases mais conhecidas e significativas de Picasso “É preciso muito tempo para se aprender a ser jovem” e podemos acrescentar que só regressando à pureza inicial de se ser criança é que é possível entender em absoluto a singularidade que Martins Correia alcançou, a transparência de um olhar curioso e apaixonado pela vida. Martins Correia soube como poucos reconhecer a essência da civilização que coloriu com a poética de uma policromia intensa. Uma paleta de cores que bebeu a sua inspiração na antiguidade clássica da arte etrusca, grega e romana a que ele vai emprestar um caracter de modernidade através, por exemplo, da rudeza de acabamentos ou das formas estilizadas.
Não foi só na pintura que a paleta imperou. Também a obra escultórica de Martins Correia destacou-se pelo forte simbolismo no uso da cor espelhando, através das suas criações, um forte sentimento humanista o que lhe valeu o cognome de “escultor da cor”. A partir de 1968, vamos assistir à adopção intensa de vermelhos, azuis, brancos, amarelos, ocres, verdes, pretos, brancos. E em tudo o que fez, na escolha da cor e na sua aplicação, cumpriu critérios muito bem definidos por ele próprio. Nada aconteceu ao acaso, nem na escolha dos materiais. Na escultura, Martins Correia fez escolhas muito significativas. Trabalhou o bronze que desde as civilizações clássicas é o material escolhido para representar de forma imponente e duradoura o divino, também optou pela pedra, espelho da alma da Terra mãe, e dialogou com o mármore que na sua nobre pureza oferece uma beleza intemporal. Tudo materiais de vida longa, História antiga, eternos tradutores dos sonhos e crenças humanas.
Falámos da inspiração dos clássicos numa articulação com a modernidade onde a influência de Picasso e Brancusi se fez sentir, mas a identidade cultural portuguesa está também assumidamente presente como musa inspiradora numa obra que se foi consolidando numa gramática singular. Quando pousamos o nosso olhar em qualquer criação de Martins Correia, nem necessitamos de placa identificativa porque o seu verbo criativo foi sempre conjugado num discurso distinto, perfeitamente identificativo. Sabemos que estamos na presença do Mestre cada vez que olhamos uma obra sua como se de imediato nos conectássemos com o artista e ele ali estivesse, de olhar brilhante por detrás dos seus óculos, e, como uma criança em deslumbramento, nos apresentasse à sua obra. Tivemos, aliás, o privilégio de ter passado um dia com o Mestre, há já muitos anos e numa altura em que a caminhada da vida já ia longa. Pudemos testemunhar o entusiasmo e orgulho genuíno com que ele falava da sua obra e procurava explicar o uso criterioso da cor.
O filósofo Michel Foucault defendia que “a maneira como as pessoas falam é muito reveladora. As palavras que escolhem, os exemplos que usam e como constroem os seus argumentos são o resultado de um longo processo de arquitetura de identidade, assimilação de valores e socialização; são o resultado do poder ao qual foram expostos ao longo de suas vidas”. Ora a linguagem de um escultor e artista plástico segue a mesma lógica e no legado de Martins Correia essa arquitectura de identidade e assimilação de valores concretiza-se através de uma iconografia muito própria onde, por exemplo, o cavalo, protagonista por excelência da Golegã, surge como um elemento que assegura a ligação entre o real e o simbólico. Animal do mito e do imaginário, representante da velocidade e do efémero, o cavalo traduz uma fusão homem/Natureza e acabaria por ter uma presença integrante e significativa na obra de Martins Correia espelhando a força da cultura equestre na região ribatejana.
A arte, constrói-se, inevitavelmente, com matéria do “seu” tempo dado que o individuo é indissociável da História que habita. A obra, apesar de libertada de um papel meramente reprodutor ou imitador da realidade, conquistando espaço para o campo fecundo da criatividade individual, não deixa de abordar os contextos em que se insere e deles se alimenta. Quando viajamos pela obra de Martins Correia, alcançamos a experiência do país genuíno que o mestre fez representar quer em figuras cimeiras como o rei D. Dinis, Camões, ou as figuras históricas ligadas aos Descobrimentos, quer nas que traduzem uma ruralidade que ele tão bem conhecia e que simbolicamente criou em figuras femininas inspiradas em Maria da Guia, sua mãe. A iconografia popular na obra de Martins Correia afirma-se com a mesma dignidade com que o mestre retratou protagonistas da História e assume-se como uma expressão da identidade cultural e civilizacional do povo português. Mas foi especialmente a sua região que lhe tomou o tempo e espaço criativo. O Ribatejo respira e vive na sua obra onde, além do cavalo, as figuras do meio rural espelham a estratificação social e através das quais se revela uma profunda consciência social e ética. Através da arte, Martins Correia almejou dar visibilidade à dignidade humana, ao sofrimento, ao esforço, ao labor que tantos abraçam nas rotinas invisíveis dos dias e que garantem a sobrevivência de uma nação. Por isso Martins Correia ganhou o epíteto de artista humanista, um artista que conseguiu a equação perfeita entre a simplicidade ancestral e o discurso estético inequivocamente marcado pela modernidade. Uma obra onde a natureza, no seu estado selvagem e puro, dialoga com a civilização.
A obra de Martins Correia, uma das mais originais da segunda metade do século XX português, convida-nos a corporizar a humanidade que se anuncia nas representações de corpos que se apresentam diante nós numa aparente simplicidade, com especial relevo para as mulheres, e onde as figuras e cores fortes emergem por vezes a partir de um negro profundo.
Em “A camponesa”, estátua em bronze policromado inaugurada em 1982, por ocasião da abertura do Museu Municipal Martins Correia, estamos perante uma imponente figura feminina que evoca a Festa dos Tabuleiros da cidade de Tomar. Trata-se de uma das obras públicas mais emblemáticas de Martins Correia porque nela está representada a força serena e firme das mulheres da região em estreita ligação com as tradições portuguesas. De pés assentes no mundo, num equilíbrio perfeito e à prova de tudo, a camponesa impõe-se como uma autêntica muralha defensiva afirmando-se num olhar preso na linha do horizonte. A figura apresenta um tabuleiro à cabeça e uma espiga na mão esquerda, elementos simbólicos da festividade e a policromia remete-nos para a alegria da Festa que a obra evoca.
Martins Correia trabalhava com a paixão quase pueril de um poeta tendo também feito uma incursão pela escrita. Apesar de ter sido a faceta menos conhecida do artista, o certo é que Martins Correia caminhava pela poesia com o mesmo deslumbramento pela vida com que deambulava pelas artes plásticas. E tudo nele se cumpriu através de uma linguagem rica em imagens sensoriais, explorando temas como a forma, a matéria e a transcendência. Na sua obra poética nós encontramos a mesma busca incessante pela beleza que ele conseguiu levar a patamares superiores sobretudo ao nível da escultura. Publicado pela editora Guimarães & C.ª, em 1982, o livro “Poemas do escultor Martins Correia” reúne poemas do mestre acompanhados por seis desenhos inéditos do autor evidenciando uma ligação umbilical entre a sua expressão escultórica e literária. Como ilustrador, chegou a colaborar com 26 desenhos coloridos para a Antologia Poética da Mulher.
Martins Correia foi um construtor de diálogos entre a palavra escrita e o objecto escultórico numa permanente caminhada pelo mundo dos símbolos, das representações conceptuais, homenageando tanto o mundo simples repleto de pessoas simples, como os mundos complexos povoados de gente de engenho e arte.
Em Novembro de 1982, foi homenageado na Golegã, numa cerimónia presidida pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes. Na altura foi inaugurada a sua estátua “A Camponesa” colocada à frente do museu Martins Correia também inaugurado na ocasião, e que reúne todo o espólio do artista. O edifício onde o museu se instalou nesse ano, tinha sido, em tempos antigos, cadeia e estação do telégrafo e veio a constatar-se que não reunia as melhores condições para preservar as obras o que inquietava Martins Correia. Será já após a morte do escultor que o museu é transferido para o edifício Equuspolis também na Golegã.
Galardoado dentro e fora de Portugal, Martins Correia tem obras suas no Museu de Arte Contemporânea de Lisboa, no Museu Soares dos Reis, no Porto, no Museu José Malhoa, nas Caldas da Rainha e no Museu de Arte Moderna de Madrid.
O escultor da cor despediu-se fisicamente da vida no dia 30 de Julho de 1999, mas continua presente no legado incrível que deixou e que, incontestavelmente, faz dele um dos grandes vultos no universo artístico português.
Não resistimos a finalizar formulando um desejo pragmático dirigido às entidades que gerem o museu Martins Correia: seria excelente que as visitas ao museu não decorressem apenas durante a semana sendo que aos fins de semana estão sujeitas a marcação prévia o que pode, na prática, inviabilizar uma incursão pelo universo policromático de Martins Correia.
Paula Timóteo