A ética na Educação

No dia 2 de dezembro de 2012, o mundo do atletismo testemunhou um episódio grandioso que, infelizmente, poucos se recordam e menos ainda dele tomaram conhecimento porque rapidamente se confinou ao mundo do esquecimento. Nesse dia não foi quebrado nenhum recorde nem alcançada uma proeza atlética extraordinária e o que aconteceu até se conta em poucas e simples palavras. A grandeza do acontecimento encontra-se na sua dimensão ética e é por isso que vale mesmo a pena recuperá-lo do baú das memórias.

Naquele dia decorria em Espanha uma prova de corta-mato e Abel Mutai, corredor queniano e medalhista olímpico, liderava isolado. Porém, a poucos metros da meta, confundiu a sinalização, talvez porque surgira numa língua que não compreendia, e parou mais cedo do que deveria, convicto de que ganhara.

Atrás de Mutai, vinha um atleta espanhol, Ivan Fernández, que, quando percebeu o que se estava a passar, em vez de o ultrapassar e ganhar sem dificuldade, começou a gritar incitando Mutai a continuar. Como o queniano não entendia o que lhe estava a ser gritado, Ivan orientou-o para a meta ajudando-o a ganhar.

Quando um jornalista perguntou a Ivan Fernández por que razão tinha tomado aquela decisão, Ivan simplesmente respondeu que o seu sonho era viver num mundo onde as pessoas se ajudassem mutuamente e acrescentou que, naquele caso, se não tivesse tomado aquela decisão teria cruzado a meta em primeiro lugar, sim, sem dúvida, mas essa vitória não teria mérito. “Que valor teria essa medalha? O que pensaria a minha mãe?” questionou na altura.

Permaneçamos uns instantes na última interrogação de Ivan e pensemos que houve um tempo em que os que da vida já somavam alguns capítulos e muita estrada andada, aconselhavam os mais novos a que, num momento de incerteza, fosse no modo de agir ou numa escolha a fazer, deveriam sempre pensar sobre o que que a mãe teria a dizer sobre o assunto. Não porque a mãe fosse mais sábia que o pai, mas porque nela se reconhecia uma outra sabedoria, aveludada de emoção e afecto onde as palavras e conselhos surgiam sempre com sabor açucarado o que os tornava mais fáceis de entender e respeitar. Havia, associado ao conhecimento que se reconhecia numa mãe e capaz de inspirar os mais novos, também a preocupação de não a desiludir, não a decepcionar fazendo algo de errado.

Provavelmente hoje os filhos sabem que alguns comportamentos que noutro tempo seriam condenáveis, têm agora o aplauso e salvo conduto familiar. Fruto deste novo paradigma de educação primária, assistem-se actualmente a comportamentos e discursos bastante disruptivos e incitadores de conduta sem ética por parte de educadores parentais que acreditam e defendem que os meios justificam sempre os fins. E defendem esta postura junto dos filhos desenhando-lhes como um dado incontornável e sem hipótese de mudança, um mundo tão agressivamente competitivo como se a vida fosse uma permanente corrida de F1.

É importante insistir que é no contexto familiar que os padrões de comportamento social, a educação para a vida em colectivo, a absorção de códigos de conduta em sociedade, são integrados no ADN evolutivo de cada criança e jovem. E por isso, a sociedade enfrenta problemas de difícil resolução sempre que esses referenciais entram numa espiral errante, esquecidos ou ignorantes de imperativos morais. Um cenário que parece estar a acontecer. Ao mesmo tempo que a família se vai demitindo do seu papel educador, a sociedade em geral e as Instituições do poder em particular, têm conferido à Escola responsabilidades parentais que não são nem devem ser da competência daquela. O que deve acontecer na Escola é um outro cenário em sintonia com o único guião que lhe compete: o académico.

É evidente que o conhecimento académico ao sustentar-se em componentes científico/culturais, ajudará igualmente a desenvolver competências adquiridas em família, ao nível da cidadania interventiva e reflexiva, a consolidar sensibilidade social e a integridade moral de um indivíduo, até porque do conhecimento resulta uma responsabilidade maior. Por outro lado, em casa, também deve fazer parte da vivência familiar a existência de experiências de descoberta cultural, de aprendizagem artística ou científica. Essas vivências acontecem com naturalidade quando, por exemplo, se visita um planetário, um museu, se compra um livro, se assiste a um concerto ou filme, se frequenta um ateliê ou se faz uma viagem. Ou seja, não existem fronteiras estanques, mas universos distintos que trabalham e responsabilizam-se por áreas educativas diferentes e que se cruzam e se mesclam de forma intuitiva e natural e nunca de maneira forçada ou equívoca.

Lamentavelmente, o Estado decidiu a dada altura que era tempo da Escola assumir o papel que cada vez mais famílias parecem não saber assumir, e às famílias atribuir o papel de escrutinadoras do que a escola faz. E esta análise vê-se corroborada, por exemplo, com a necessidade de criação de uma disciplina como a de Cidadania, recentemente envolvida em polémica, e que evidencia um falhanço da Educação parental, mas também a da própria Escola.  Só nos pode sobressaltar o facto de passar a fazer parte do currículo algo que deveria vir construído de casa e depois reforçado na escola sendo que aqui se faria através de um trabalho académico em que as matérias que hoje se encontram no currículo de Cidadania seriam trabalhadas de forma natural. Por exemplo, na análise crítica de uma obra literária e das suas personagens, ou nos conteúdos de ciências naturais e sociais não há um tema de Cidadania que não seja atendido apesar de poder não surgir de forma explícita com nomenclatura específica. Mas, em todo o caso, é em casa que as áreas temáticas propostas no currículo de Cidadania devem ser parte integrante da Educação inicial.

Vem tudo isto a propósito do episódio ocorrido entre dois desportistas e a reflexão final feita pelo atleta espanhol: Que mérito teria a sua vitória e o que pensaria a sua mãe caso ele não tivesse sido desportivamente honesto? Porque a honestidade intelectual, desportiva ou de outra natureza, impulsiona-nos sempre a uma opção certa regida por um primado que não discutimos: não ceder à tentação de alcançar o que desejamos quando para isso se tenham de galgar as costas dos outros ou aproveitar um momento de fragilidade do outro.

Num mundo que vive uma época pautada pela competitividade cega e selvagem, uma espécie de corrida desenfreada cada vez mais estimulada em família em consonância com a tendência dos discursos institucionais, o episódio do atleta espanhol surge como uma raridade que deveria servir de modelo ilustrativo de como uma boa educação em família é fundamental na transformação de um indivíduo. Certamente que Ivan Fernandez não teve nem necessitou de ter uma disciplina de Cidadania. O pensamento, julgamento ou análise crítica da mãe eram para ele a bitola, o indicador e padrão ético a seguir.

Naquele dia, a boa Educação parental e a ética desportiva venceram.

Em 2 de Dezembro de 2012 não foi quebrado nenhum recorde nem alcançada nenhuma proeza medida em segundos, medalhas ou recordes. Mas ficou uma história de integridade que não se mede em segundos.

                                                                                                                                                                Paula Timoteo

Paula Timóteo

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