O Naturalismo

Em pleno século das convulsões sociais e grandes revoluções oitocentistas, dois grandes movimentos se impuseram em clara divergência e oposição ao Romantismo, movimento que se sustentava numa visão idílica da vida. Primeiro o Realismo, começando pela pena atenta e acutilante dos escritores e em Portugal, Eça de Queirós assumiu a voz crítica e caricatural de uma burguesia mesquinha e tonta, depois o Naturalismo que podemos considerar como sendo uma versão radical do olhar realista e que de igual forma pretendeu dar palco e visibilidade à realidade tal como ela era, sem pinceladas romanceadas e longe da vida idealizada de que o Romantismo tinha sido emblema e voz. Mas se no Realismo encontramos uma leitura virada sobretudo para as elites urbanas, embora crua e mordaz, com o Naturalismo temos essa mesma observação fiel da realidade, mas com algumas nuances que nos leva a enquadrar o movimento como um desenvolvimento do Realismo.

Surgido na literatura, artes plásticas e teatro em meados do século XIX, o Naturalismo foi fortemente influenciado pelas correntes científicas e filosóficas que iam surgindo como o determinismo e o darwinismo validando-as com exemplos e narrativas sustentadas na fidelidade com que retratavam a realidade. As personagens são de classe mais baixa, relativamente ao movimento de que descende, e os temas mais explorados são a pobreza, as desigualdades, a corrupção, a violência, o sensualismo e o erotismo.

Lembremos que o Romantismo, que havia marcado a anterior gramática artística durante um período que se estendeu entre os finais do século XVIII e a 1ª metade do século XIX, sustentava-se na paixão defendendo a subjetividade fruto das emoções e experiências pessoais do artista em contraste quer com a racionalidade do Classicismo, que lhe antecedera, quer com a posterior objectividade do Realismo e o cientifismo do Naturalismo.  Só a objectividade podia assegurar a fiel representação da realidade e, dessa forma, validar como verdade a vida e as personagens representadas, sem hipótese de se pensar que seriam fruto de uma visão emotiva e individual do artista. No Romantismo tinha havido ainda uma preferência por temas inspirados pela época medieval o que não se encontra, claramente, nos movimentos seguintes. Assim, quer o Realismo quer o Naturalismo surgem como respostas reativas ao Romantismo sendo que para os artistas naturalistas a rejeição da subjectividade fundava-se ainda na crença de que tudo era passível de uma explicação lógica. Desta forma, e através de uma visão imparcial dos factos, a arte assumiu-se neste período como tendo também uma responsabilidade de denúncia social, focando-se em temas sociais considerados mais pertinentes e por isso mais inspiradores como as desigualdades, os contextos humildes dos camponeses, a disputa do poder. Na pintura portuguesa o Naturalismo terá uma expressão suavizada dando palco a estética mais sentimental. Por isso, é comum considerar-se que o Naturalismo português tem uma assinatura muito própria e o resultado é uma original absorção dos cânones da nova “escola”, mas em simbiose com as tonalidades e paladar lusos.

Em 1875, a literatura portuguesa abre a porta do Naturalismo com a obra O crime do padre Amaro que surge com escândalo sendo hoje considerado o primeiro romance naturalista publicado fora de França onde a literatura naturalista nascera em 1867, com a publicação da obra Thérèse Raquin, de Émile Zola (1840-1902). Curiosamente, o mesmo Eça que nos habituara a traçar quadros burgueses realistas também se revelou mestre na capacidade de nos fazer entrar pelo universo tão colado ao Naturalismo como é o caso de O crime do padre Amaro. Faz sentido aqui recuperar a ideia fundamental que atravessa e sustém a obra: a de que o comportamento humano é condicionado pela hereditariedade, pelo meio social e pelas circunstâncias. Recordemos que a personagem principal é apresentada como uma vítima de sua formação repressora (educação religiosa e celibato imposto) que acaba por explicar a sua queda moral e esta base, esta estrutura construtora da narrativa enquadra-se rigorosamente com os traços naturalistas.

A obra queirosiana é assim particularmente interessante porque reúne aspectos que evidenciam a complementaridade dos dois movimentos que se cruzam na linha do tempo e das mentalidades.

Por seu turno, é interessante analisar de que forma é que as artes plásticas reagem à cada vez maior popularização da fotografia considerando que o movimento deseja ser um espelho rigoroso da realidade. Ora os Naturalistas irão então responder mostrando que representar a realidade não deve impedir uma leitura criativa e pessoal do ponto de vista estético. Desta forma, procuram enaltecer e dar especial atenção aos valores atmosféricos com os efeitos de luz a assumirem protagonismo na fiel representação da natureza e nos ambientes que envolvem as personagens trabalhadas. A clara e imediata identificação por parte do público, com as temáticas e personagens/tipos do Naturalismo irá garantir uma imediata e fácil adesão daquele, agradado com as temáticas privilegiadas que testemunham aspetos da vida quotidiana.

Os artistas portugueses

Entre os artistas portugueses naturalistas que tiveram maior notoriedade contam-se nomes como Silva Porto (1850-1893), José Malhoa (1855-1933), Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), João Vaz (1859-1931) e Sousa Pinto que neste número tem especial destaque.

Com excepção do último, com carreira feita sobretudo em França, os restantes   fizeram parte do famoso “Grupo do Leão”, que Columbano eternizou em 1885 no famoso quadro que se encontra no Museu do Chiado. Sobre este grupo, reunido regularmente em tertúlias, que facilmente imaginamos apaixonantes, no café Leão de Ouro entre 1881 e 1889, já havíamos feito referência no nosso número de Abril, mas lembremos que as reuniões juntavam pintores, escultores e escritores de vanguarda na área do Realismo e Naturalismo (na verdade assumiam-se como realistas apesar de posteriormente terem sido considerados mais naturalistas). Importa sublinhar que os encontros não se limitaram a animadas e longas conversas em redor das mesas do café dado que o grupo assumia um compromisso com a divulgação da sua produção artística organizando, com esse propósito, diversas exposições.  

Esta onda de intervenção artística e motivação criadora havia sido impulsionada pelas Academias de Belas Artes quando, em 1867, tinham iniciado a atribuição de bolsas a alunos no estrangeiro. Silva Porto (1850-1893) e Marques de Oliveira (1853-1927) foram os primeiros bolseiros em Pintura e a eles se deve a introdução do naturalismo da Escola de Barbizon que se iria estender até aos anos 20 do século XX.

Ingressaram na École des Beaux-Arts de Paris em 1873 e, em Barbizon, berço do Naturalismo, conviveram com artistas seguidores da pintura de ar livre focando-se nos efeitos da luz sobre a paisagem. Em Auvers, convivem com Daubigny, um dos mestres do movimento e viajam por várias cidades de Itália. Silva Porto regressará a Portugal em 1879 e as paisagens que apresenta na histórica exposição da Sociedade Promotora das Belas-Artes, em 1880, introduzem a estética naturalista em Portugal. Na fase tardia da sua actividade irá dedicar-se a tipos e costumes regionais, matéria que Malhoa e Carlos Reis irão aprofundar.

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Colheita – Ceifeiras, de Silva Porto. Esta obra integrou a Doação Honório de Lima (DHL) feita a favor da Câmara Municipal do Porto em 1941.

Colega e contemporâneo de Silva Porto, Marques de Oliveira bem cedo revelou vocação para o desenho o que o levou, com onze anos de idade, a ingressar na Academia Portuense de Belas Artes, nas aulas de Desenho Histórico, seguindo-se, em 1869, o curso de Pintura Histórica, onde se distinguiu como um dos melhores alunos de João António Correia.
Em 1873, partiu para Paris na qualidade de pensionista, mas apesar de, quer em contexto académico quer como bolseiro, ter trabalhado temáticas históricas, a sua preferência irá inevitavelmente orientar-se para os ambientes e temas nortenhos, em especial na região de Matosinhos e da Póvoa de Varzim, tendo sido um dos principais responsáveis pelo aparecimento das revistas Arte Portuguesa, no Porto e Crónica Ilustrada, em Lisboa.

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Praia de banhos, Póvoa do Varzim (1884), Marques de Oliveira, Museu do Chiado

Marques de Oliveira foi ainda um artista que ficou para a História da pintura como alguém que, empenhadamente, lutou pela modernização da Escola de Belas Artes do Porto e renovação artística nacional.

Também Henrique Pousão e Sousa Pinto seguiriam para Paris em 1880. A pintura de caminhos e ruas, pátios, casas e aspectos de Paris, testemunha o percurso criativo de Pousão, que, por motivos de saúde parte, cerca de 5 meses depois da chegada a Paris, para Roma. Do período que passa na capital italiana e em Capri, ficaram as sedutoras paisagens mediterrânicas, plenas de luz, como as Casas brancas de Capri. Já Sousa Pinto fixa-se nos ambientes da Bretanha que traduz genialmente.

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Casas brancas de Capri, 1882 óleo sobre tela. Doado pelo pai do artista ao MNSR em 1884

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 A ceifa (Lumiar), pintura a óleo sobre madeira não datada (1884), de Silva Porto, na Casa-museu Dr. Anastácio Gonçalves, em Lisboa

Muitos artistas mais haveria ainda a mencionar, mas como última referência, falemos de João José Vaz que foi escritor e pintor. Matriculado em 1872 na Academia de Belas Artes de Lisboa, é hoje considerado um dos melhores pintores das paisagens de mar e rio da sua geração. O Tejo e o Sado foram temas preferidos, mas o que é distintivo na sua obra é a capacidade de reflectir com uma grandeza sossegada e poética, a solidão dos espaços, a representação do vento e a presença humana que se destaca em pequena dimensão como que a relevá-la para um plano secundário. Relativamente à forma como surge a figuração humana há a posição de críticos de arte que consideram a sua existência apenas como uma estratégia para definir escalas, uma prática comum da época.

Tradicionalmente, Portugal seguiu sempre com algum atraso as escolas ou correntes artísticas, mas o certo é que esse aparente atraso talvez tenha proporcionado uma certa originalidade, uma via diferenciada marcada pela fusão entre uma cultura e visão lusa e os acordes pictóricos de uma Europa cosmopolita. E por isso não é por isso de estranhar que o Naturalismo tenha apresentado características sui generis onde reconhecemos uma menor tendência de se assumir com um papel de intervenção ou denúncia social num  entendimento do Naturalismo com um mais forte pendor sentimental.

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A praia, João Vaz, óleo sobre tela, Casa Museu Anastácio Gonçalves

Paula Timóteo

Paula Timóteo

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