Portugal vivia os bons ventos da Regeneração quando, a 15 de Setembro de 1856, nascia, em Angra do Heroísmo, José Júlio de Sousa Pinto que viria a ser um dos nomes maiores do Naturalismo português.
Sousa Pinto teve a possibilidade, rara na época e em especial para uma criança açoriana, de uma formação artística formal. Aos 14 anos, acompanha os pais num regresso definitivo para o continente de onde eram naturais. Esta mudança viria a ser determinante para o percurso de Sousa Pinto já que na cidade do Porto ingressaria na Academia Portuense de Belas-Artes onde se iria fortalecer o início da sua caminhada artística. Rapidamente o talento do jovem estudante foi reconhecido pelos professores como Soares dos Reis e António Ramalho que eram fortemente influenciados quer pelo romantismo quer pelo naturalismo que emergia na época. Nesta fase ainda muito precoce da sua vida, Sousa Pinto iria desenvolver o gosto pela observação da realidade e representação do quotidiano.
Foi também no Porto que começou a tomar contacto com a pintura europeia moderna, nomeadamente a francesa, impulsionando-o a continuar a sua formação em Paris, cidade para onde parte em 1880 e onde se afirmaria como artista. Paris era, como bem sabemos a capital da arte. Ali se concentravam os jovens e menos jovens ansiosos pela partilha de experiências, aprendizagens, descoberta de novos rumos e linguagens, debates e confronto de ideias. Era ali que fervilhavam movimentos vanguardistas que experienciavam caminhos inovadores. Paris não dormia. Paris era o sonho de qualquer artista. Nem todos ali encontraram o seu caminho e já aqui falámos de Almada Negreiros que anos mais tarde não se identificaria com o ambiente nem com a dinâmica, mas Almada foi um caso ímpar de polifacetismo artístico e dono de um olhar e narrativa muito ligados a Portugal além de ter ido a Paris já numa outra época.
Com Sousa Pinto a história foi bem diferente. Tendo viajado com Henrique Pousão que tal como ele havia conquistado uma bolsa como pensionista do Estado para estudar em Paris, e que precocemente faleceria quatro anos depois, viveu largos anos em França. Na cidade da luz começou por estudar na célebre École des Beaux-Arts, o que lhe permitiu um profundo contacto com o Naturalismo, movimento artístico e literário surgido na 2ª metade do século XIX e que acabaria por assumir um paradigma estético e conceptual que defendia a proximidade com a realidade uma opção conceptual do agrado de Sousa Pinto.
Em França teve a oportunidade de conviver com artistas consagrados recebendo influências de Collin, Dagnan-Bouveret e Bastien-Lepage tendo sido aluno de Yvon e Alexandre Cabanel. Em 1883, expôs no «Salon» o quadro «La culotte déchirée» (“O calção rasgado”), um tanto influenciado por Bastien-Lepage, obra aplaudida pela crítica francesa e que ganharia uma menção honrosa. Logo a seguir, apresentou no Porto a famosa pintura «A macieira partida» também conhecida por «Depois do vendaval», que lhe valeu a consagração apesar da sua juventude.
Na região da Bretanha, Sousa Pinto encontrou um universo pleno de possibilidades pictóricas que o apaixonou e que soube representar como ninguém. As atmosferas bucólicas e os campos enevoados, os tipos e costumes, os momentos plenos de simplicidade e beleza que tanto podiam ser um encontro de namorados (Le rendez-vous (O encontro) (1893) ou a imagem de duas crianças a tirar batatas da terra (A colheita da batata, 1898), elevou o pintor português a um estatuto de grande nível e a um justo aplauso fora de portas lusas porque em pouco tempo havia se tornado num dos melhores intérpretes daquela região francesa.

O encontro, óleo sobre tela, 1893 – Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro
Uma das obras mais conhecida é a emotiva tela «O barco desaparecido» (1890, Museu do Chiado) onde Sousa Pinto traduz o ambiente desolado de uma praia bretã com duas mulheres que, frente ao mar, choram o não regresso de alguém.

Barco desaparecido, óleo sobre tela, 1890 – Museu do Chiado, MNAC
Curiosamente, e apesar do reconhecimento internacional, raro para um artista português, já com numerosos prémios ganhos e elogios da crítica conquistados validando-o como um artista de sensibilidade e grande mestria técnica, Sousa Pinto foi durante algum tempo pouco apreciado em Portugal, ao contrário de contemporâneos como Columbano Bordalo Pinheiro ou Silva Porto.
Apesar de uma parte significativa da sua obra o integrar na arte francesa contemporânea, Sousa Pinto manteve-se profundamente português no sentimento interpretativo, consoante o atestam os seus quadros de Francelos e de Valongo, a terra natal de seu pai, como o quadro «Molhado até aos ossos», de sabor tão arreigadamente lusíada. Nesta e noutras telas similares Sousa Pinto liberta-se da influência de Bastien-Lepage, Dagnan-Bouveret e Collin e atinge a plena autonomia, afirmando-se como artista de assinatura própria. A carreira de Sousa Pinto prosseguiu triunfalmente em Paris, onde a sua presença no «Salon» se tornou habitual. Em 1884 apresentava «O hóspede inconsolável», em 1887 «L’égaré», em 1888 «Molhado até aos ossos», em 1889 «A partida para o trabalho» (Exposição Universal de Paris), em 1890 «O barco desaparecido», em 1891 «A volta dos barcos», em 1892 «Preparativo do barco», e assim por diante.

Molhado até aos ossos, 1888
Profundamente conectado com o ambiente da Bretanha, Sousa Pinto conseguiu manter uma linguagem pictórica a duas vozes porque a sua afinidade emocional e estética com Portugal, país onde permanecia em periódicas e longas estadias, foi profusamente por ele representada sendo que os ambientes e pessoas/tipo eram bem diferentes dos encontrados no norte de França.
Em 1916, José de Figueiredo, crítico de arte e na altura director do Museu Nacional de Arte Antiga, no prefácio do catálogo da exposição do artista em Lisboa, na Sociedade Portuguesa de Belas Artes, faz eco do portuguesismo do pintor, lançando uma pergunta que se destinava provocatoriamente a quem criticava Sousa Pinto: «Mas quem há aí, sem esquecer Malhoa, o ilustre mestre e incomparável cronista da vida estremenha, que, melhor do que ele, traduza com a sua arte o homem e o rincão português?». E a série de paisagens e de tipos portugueses representados não dão margem para dúvidas: nelas habita e respira a alma portuguesa. Quando repousamos a atenção diante A macieira partida (1883), obra produzida ainda numa fase inicial da sua carreira, somos inegavelmente levados até junto da desconsolada camponesa para ali permanecermos com ela. E todo aquele cenário nos é familiar em especial a anciã que nos lembra a nossa avó ou a avó de alguém que conhecemos. Dela temos a certeza do som da sua voz, das palavras que terá dito depois de um longo silêncio magoado diante da sua macieira partida, a macieira preferida que dera tão bons frutos e, quem sabe, plantada aquando do nascimento de algum filho.

A macieira partida, 1883, Museu Nacional Soares dos Reis
Marcadamente naturalista, este quadro é do mesmo ano de O calção rasgado e quase diríamos que é a mesma avó camponesa que agora se senta junto à lareira tentando enfiar a linha na agulha.
Mais tarde, a Cabeça de velha (Museu Nacional Soares dos Reis), O Algarvio (1910), A Rapariga de Valongo (1910); A senhora Antónia, (Francelos, 1914), são obras que testemunham o interesse por personagens/tipo portuguesas que o artista genialmente sabia representar confirmando uma leitura emocional com o universo pátrio.

Cabeça de velha, óleo sobre tela, sem data – Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Brasil

Cabeça de velha, lápis sobre papel, sem data. Museu do Chiado, MNAC
Na obra que nos legou, encontramos, quer nas representações lusas quer nas Bretãs, a autenticidade do mundo rural, no seu quotidiano, nas paisagens campestres na proximidade com o mar ou com os rios, nos dramas vividos pelos aldeões, cumprindo uma gramática conceptual naturalista, mas também reconhecemos a singularidade nos retratos de cenas de género e interiores como em Interior de laboratório, (1903).
Grandes museus da França, da América, da Austrália, e, claro que também de Portugal onde o podemos encontrar no Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto e no Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, adquiriram as suas obras e a aclamação espelha o facto de que a sua arte, ao mesmo tempo sensível e vigorosa na forma como sabia captar e honrar a beleza de forma natural e poética de pessoas e lugares, não conhecia fronteiras e possuía incontestavelmente a alma de Sousa Pinto. E o que distingue um artista daquele que apenas reproduz o que vê, é exactamente a capacidade de incorporar as influências recebidas num discurso único e individual. Retomando as palavras de José de Figueiredo, pensemos que Sousa Pinto «Sem ser um impressionista arregimentado, como também o não é Besnard que, entretanto, foi mais longe na interpretação dos fenómenos luminosos do que Manet, (…) como Corot, Troyon, Daubigny e outros pintores de 1860, procura traduzir amorosamente os cinzentos finos da manhã e os ensombrados mais empastados e irisados do crepúsculo, não descura todavia, como os partidários de Monet, os efeitos de luz em pleno dia».
Não resistimos a pensar que Sousa Pinto foi um alquimista porque soube estabelecer a ligação entre vários movimentos. A transição e ligação entre o Realismo e o Naturalismo (ver artigo sobre o Naturalismo) é clara quando reconhecemos a representação da realidade com as suas dores e banalidades, bem como as camadas mais simples e pobres da sociedade, mas quando observamos os contextos campestres, é quase inevitável sentirmos ali, já um trabalho pictórico que alude e antecipa o Impressionismo e por isso há quem o considere um pré-impressionista que não abdica do rigor do desenho académico.
Na obra do pintor açoriano somos absorvidos tanto pelas silenciosas nuances bretãs como pela força da alma que eclode das terras lusas. A lúcida expressão dos rostos, os interiores humildes, os episódios que passam despercebidos na vaga dos dias, as crianças e figuras femininas, os pescadores e camponeses, de tudo se fez a obra de Sousa Pinto um pintor do autêntico que soube com mestria usar uma paleta cromática de grande beleza poética e onde a luz assume um papel singular. Ela envolve sem se sobrepor e sem foco desmesurado porque é usada sem obsessão e na medida exacta que nos permite uma simbiose com as atmosferas vividas pelas personagens. Ela serve a intenção do tema e este nunca é um mero pretexto para jogos de luz e de cor.
Hoje, parte da sua obra encontra-se em museus nacionais e mantém o interesse para um público alargado no que é um indicador claro de actualidade do seu olhar contemplativo.
José Júlio Sousa Pinto representa o que de melhor se fez em Portugal e no mundo oitocentista na representação do que podemos pensar serem pequenas coisas, na forma como lhes conferiu protagonismo encontrando nas rotinas simples de gente simples um encanto que poucos reconheceriam. Por isso a sua pintura é comovente e sedutora. Perceber que Sousa Pinto viveu décadas cruciais na vida portuguesa marcada por momentos de ânimo e desânimo, de progresso e estagnação, de visão futurista em contra-marcha com a conservadora, ajuda-nos a entender a maturidade da sua obra que soube fundir e articular discursos diversos, mas não divergentes.
Sousa Pinto permaneceu fiel à sua visão do mundo sabendo com mestria estabelecer pontes e construir caminhos.
Paula Timóteo