Os animais na Arte I Uma viagem no tempo

«Passou uma tarde, veio a manhã: era o quarto dia. Deus disse, depois: “Que as águas sejam povoadas de seres vivos e que entre a terra e o firmamento haja aves a voar.” […] E Deus criou os grandes cetáceos e toda a espécie de seres vivos que se movem e povoam as águas e ainda todas as espécies de aves. E Deus achou que eram coisas boas e abençoou-os desta maneira: “Sejam férteis e cresçam; encham as águas do mar e que, em terra, as aves se multipliquem também.” Passou uma tarde, veio a manhã: era o quinto dia. Depois, Deus disse: “Que a terra produza toda a espécie de seres vivos”

Foi em Florença, Itália, que, em 4 de Outubro de 1931, se comemorou pela 1ª vez o Dia Mundial do Animal a partir de uma iniciativa a cargo de um grupo de ecologistas e defensores dos animais. A escolha da data não tinha surgido por acaso porque coincidia com o dia de São Francisco de Assis (1181–1226), padroeiro dos animais. Desta forma homenageou-se o Santo, mas sobretudo, e através do seu exemplo, pretendeu-se honrar e celebrar o quanto os seres de outras espécies nos têm sido importantes e absolutamente fundamentais na vida da humanidade. Sem eles o Homem não teria sobrevivido nem do ponto de vista literal nem metafórico porque viver é bem mais do que um processo biológico em curso.

Celebrar os animais, mas, em simultâneo, alertar para a urgência de lhes assegurarmos um tratamento respeitador pleno de atenção e amor é, pois, o objectivo do seu Dia.

O elo que tem unido o Homem e os restantes animais traça-se através de um longo caminho. Uma linha temporal que encontramos nas histórias ouvidas ao longo de gerações, na literatura e nos diários, mas também nas figuras que surgem em telas, ou esculpidas em pedra adornando casas, palácios, jardins e até campas de tutores.

A representação zoomórfica começa num tempo tão distante que dele nos chegam apenas ecos silenciosos de escassos vestígios e desenhos traçados em paredes de rocha onde os bisontes, cavalos e veados surgem a par dos homens em cenas de caça. Vivia-se então numa Era em que o Homem ainda não havia desenvolvido a linguagem, mas já possuía a necessidade de traçar nas paredes rochosas os animais que partilhavam com ele o seu mundo. Assim, e se quisermos falar da representação artística de animais, teremos de recuar à pré-história. Como observa Raul Correia: «(…) da maneira mais natural e mais simples, a Arte instalou-se para sempre entre as criaturas humanas; e os animais, amigos ou inimigos, servos e companheiros ou simples peças de caça, instalaram-se sempre na Arte, e praticamente em todas as Artes».

Foz Côa, c. 22 000 – 10 000 a.C.

O crítico de arte, John Berger, defendeu na sua obra About Looking, em 1980, que os animais terão sido o primeiro tema para a pintura, tendo o seu sangue sido, provavelmente, a primeira tinta. E hoje, as pinturas e gravuras rupestres das cavernas de Lascaux em França e Altamira em Espanha, do Parque Nacional da Serra da Capivara no Brasil ou as de Foz Côa em Portugal são alguns dos testemunhos silenciosos de uma humanidade que dava os seus primeiros passos em estreita ligação com outras espécies.

Aquando do Império Romano e das perseguições aos cristãos, a necessidade de uma codificação que permitisse falar de Cristo sem O mencionar conduziu a comunidade cristã a recorrer ao peixe e ao cordeiro como símbolos do Redentor e ainda hoje mantêm uma elevada carga alegórica cristã.

Ao longo da Idade Média, a imagética do reino animal surge com conotações simbólicas em objetos utilitários, em pinturas e também nos bestiários que eram manuscritos ilustrados onde se reuniam descrições de animais, reais e imaginários, acompanhadas de interpretações morais ou religiosas. Ao longo do tempo, os temas animalistas vão evoluindo surgindo representações individuais ou colectivas mantendo durante muito tempo uma simbologia religiosa, mitológica ou naturalista.

A candura encantadora dos animais, o seu olhar pleno de silêncio significante, a sua presença reconfortante e as experiências apaixonantes que os humanos têm somado ao longo da sua existência, têm gerado uma natural vontade de perpetuação desses vínculos e de os dignificar em obras intemporais. Mas foi principalmente a partir do século XV que o animalismo começou a ganhar outro fôlego e consistência temática.

Durante o Renascimento, o progresso das ciências experimentais, fruto do interesse pela observação da natureza, reflectiram-se ao nível da ilustração naturalista permitindo uma maior objetividade e interesse na representação realista de animais que surgem integrados em paisagens campestres. Nos retratos, a sua presença ora evidenciava um vínculo emocional entre Homem e animal ora servia para ostentar um certo estatuto social como acontecia quando se retratavam cães de raça. Um dos artistas que mais se destacou na pintura de animais, foi o holandês Paulus Potter (1625-1654) que irá influenciar o realismo e naturalismo do século XIX, nomeadamente na obra do francês Constant Troyon (1810-1865).

Em pleno naturalismo vamos encontrar a representação de animais de estimação, particularmente cães e gatos, numa série de pinturas que pretendem retratar o conforto e bem-estar da classe média ao mesmo tempo que ilustram a conquista pelos animais de um lugar de afecto num contexto familiar. Terá sido nesta época que foi crescendo o conceito de animal doméstico como um elemento que partilha o interior da casa perdendo o seu carácter utilitário e assumindo destaque emocional. A este propósito, Berger explicava em 1984 que a transformação dos campos em cidades, somada à escassez de animais causada pela revolução industrial, teria levado cada vez mais pessoas a ter animais como companheiros ao invés de provedores de trabalho e alimento.

Na Inglaterra, George Stubbs (1724-1806), Edward Landseer (1802-1873), autor do retrato canino de Eos, A Favorite Greyhound of Prince Albert (1841) e Charles Burton Barber (1845-1894), que se dedicou a pintar crianças com os seus animais, foram nomes consagrados.

Como pintores animalistas, destacaram-se, na França do século XIX, Charles Jacque (1813-1894),

Mas, especialmente, Rosa Bonheur (1822-1899) um caso raríssimo de reconhecimento do talento feminino no século XIX, tendo inclusive sido admirada por Delacroix. Uma das suas obras mais emblemáticas é “A Feira de Cavalos, não apenas pelo rigor e técnica exímia, mas pela forma como o tema é tratado pleno de vigor e movimento. A artista levou 18 meses a concluir o gigantesco quadro de 2,44 x 5,07 m, que hoje se encontra na Metropolitan Museum of Art em Nova York , e que mostra o mercado de cavalos de Paris. A obra foi descrita pelo New York Times como um “desfile enlouquecedor de carne humana e animal em uma cena de batalha épica”.

Actualmente, sabemos que a presença de animais no espaço doméstico como elementos da família é uma prática vulgar. Em simultâneo, o entendimento de responsabilidade colectiva pelo bem-estar animal, valorizando o papel que eles exercem nas nossas vidas, foi evoluindo e fruto deste despertar para a dignificação e salvaguarda do animal, também se iniciou um debate sobre a forma como os animais são usados em diferentes manifestações artísticas e culturais. Por vezes surgem até condenações pelo mundo artístico porque a arte não pode ser um amplo chapéu de liberdade onde tudo pode ser possível incluindo maltratar, humilhar e matar Por isso, a Arte Contemporânea traz consigo também a necessidade de debates éticos no que diz respeito a direitos dos animais principalmente em casos como o de Nathalia Edenmount que mata animais para usar os seus cadáveres, ou partes do seu corpo, para as suas produções fotográficas.

Quanto a Portugal, apesar de ter, em grande medida, seguido tendências europeias, não deixou de apresentar as suas especificidades. Durante a Idade Média e Renascimento assistiu-se a uma forte presença de animais simbólicos em retábulos e iluminuras como o cordeiro, a pomba ou o leão. A aventura da expansão marítima foi, por sua vez, um marco determinante que forneceu contributos expressivos. Começaram a surgir nas representações, nomeadamente escultóricas, animais exóticos até então desconhecidos como os papagaios, macacos, elefantes.

Nos séculos XVII–XVIII as naturezas-mortas e cenas de caça aparecem em menor escala do que no Norte da Europa, mas chegados ao século XIX, Portugal é bafejadocom uma série depintores naturalistas e românticas que vão usar animais em contextos rurais, reforçando a ligação à vida camponesa e à paisagem portuguesa.

Silva Porto e os parceiros do Grupo do Leão integram nas suas obras animais de trabalho como bois, cavalos e burros com sensibilidade realista, mas antes deles, Tomás de Anunciação já havia se destacado como o grande mestre na pintura animalista e exactamente por isso ele é o nosso artista em destaque neste número

A chegada do século XXanuncia-se com um Amadeo de Souza-Cardoso vanguardista que irá estilizar animais em algumas das suas obras. Muitos anos irão decorrer até surgir um Júlio Pomar que protagonizará um dos contributos mais significativos nesta temática tendo dedicado ciclos de obras a animais. Na sua extensa obra, a que dedicámos um artigo no número de Fevereiro, podemos encontrar representados, entre muitos mais, o porco, o macaco, o tigre, o cavalo….

Paula Rego e Graça Morais são outros exemplos que comprovam de forma inequívoca como o reino animal pode ser inspirador.

Paula Timóteo

Paula Timóteo

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