Arte Contemporânea I A Ruptura difícil de entender

Falar sobre arte contemporânea é um desafio difícil porque as expressões artísticas que surgem com maior vigor no pós 2ª Guerra Mundial, integram-se em movimentos que questionam a própria Arte, testam os seus limites e colocam em equação os critérios que a definem. O resultado são manifestações artísticas que nem sempre se apresentam num produto convencional que o público espera ver e, sobretudo, está preparado para ver. 

Nesta nova época, o artista, de certa forma, já não considera como principais objectivos, testar e procurar novas metodologias, reformular leituras e opções do que deve ser o objecto a ser trabalhado e representado, escolher o melhor local para pintar: ateliê ou o ar livre, optar pelo figurativo ou o abstrato, selecionar o uso das cores e a sua relação com texturas, simbolismos ou proporcionalidades. A Arte é agora provocada pelo próprio artista interpelando-a na sua identidade. 

À pergunta que tem acompanhado debates académicos e tertúlias “O que é a Arte?” talvez não seja possível dar uma resposta filosófica. Porém, há quem defenda que é o mercado de arte, essa entidade abstracta e com claros objectivos lucrativos, quem acaba por definir o objecto artístico como tal, sempre que atribui uma cotação a uma obra. Dessa forma, e na falta de mais outro critério ou indicador, seria de imediato rotulado como arte o que tivesse uma elevada valorização monetária. Claro que os críticos de arte não são alheios ao processo de reconhecimento da Arte, mas, em todo o caso e seja lá quem esteja na retaguarda da classificação como obra de arte, fica muitas vezes a sensação, no “comum dos mortais”, de que lhe está a escapar alguma coisa porque não consegue entender de que forma se considera arte o que por vezes lhe é apresentado. 

No início do século XX, a seguir à 1ª Guerra Mundial, o movimento Dadaísta já havia provocado sobressalto na sociedade quando surge com o objectivo de evidenciar o absurdo. O mundo tinha acabado de sair de uma guerra insana e mortífera como nunca havia acontecido e os artistas reagiram ao caos com um movimento, o Dadaísmo, que desafiava as convenções e procurava reflectir a irracionalidade do mundo e por isso, uma das características do movimento é o princípio do nonsense. Com uma fusão de ironia, humor e absurdo, os artistas desafiavam as expectativas do público confrontando-os com objectos de uso quotidiano, mas integrados num espaço expositivo e, dessa forma, alterando-lhes a sua categoria. E ficou famosa a Fonte de Marcel Duchampde 1917,um mero urinol invertido enviado para a exposição inaugural da Sociedade dos Artistas Independentes realizada no Grand Central Palace em Nova Iorque.  De acordo com o artista a sua intenção era mostrar que “objectos quotidianos (podem ser) elevados à dignidade de uma obra de arte pelo acto de escolha do artista”. Ora aqui temos um critério de definição de arte a que assistimos correntemente. Depois do “mercado” e críticos galvanizarem o nome de um artista tornando-o inquestionável, difícil se tornará não considerar “Arte” o que ele realizar dizendo que o é. Vemos isso constantemente com os escritores onde a cada livro o nome surge graficamente em maior destaque que o título do livro. Nestes casos, é o nome do escritor que se torna mais chamativo do que qualquer título ou interesse suscitado pela leitura da sinopse ou dos primeiros parágrafos.

Em 2015, numa entrevista ao jornal IOnline, Julião Sarmento responderia de forma muito peremptória quando questionado sobre se tinha por vezes dúvidas em perceber se o que via era arte ou não: Quando acho que não é arte, não é mesmo! Há sempre aquela teoria que “arte é tudo aquilo que um artista faz e diz que é arte”. Mas aí, depois podemos perguntar o que é um artista? E daí podíamos dizer que é aquele que faz a arte. E entrávamos no jogo do ovo e da galinha. E é um pouco isso, efectivamente. Acho que todas as linguagens são possíveis. E atualmente há um excesso brutal de informação. É um exagero, há artistas a mais, imagens a mais, coisas a mais.”

Mas não deixa de ser significativo que os movimentos de maior ruptura conceptual em relação à ideia do que é a Arte tenham surgido no rescaldo das duas grandes guerras. Como uma catarse e um murro na alma de uma humanidade em choque e a lamber feridas profundas, nasceram narrativas e reações de forte impacto e provocação. E em cada época, abanaram consciências e rebentaram não com o mundo, mas com os limites do possível, desconstruindo padrões e ideias. 

Mas a questão sobre o que é afinal um objeto de Arte, se excluirmos o critério comercial, a opinião de um crítico de arte ou o acto do artista, permanece.

Tolstói, que se dedicou numa fase tardia da vida a ensaios filosóficos, demorou 15 anos a escrever a sua reflexão sobre este assunto do que resultou o livro O Que é a Arte?  considerado por muitos como sendo a obra cimeira da fase filosófica do escritor russo. Na obra, Tolstói refere que a arte é uma coisa séria não sendo uma mera questão de beleza e ainda menos de divertimento ou de obtenção de prazer. E defende que a arte autêntica é acessível a todos definindo-a pela sua “capacidade de comunicar sentimentos que possam contribuir para a união das pessoas e para o aperfeiçoamento moral de toda a comunidade.” 

A definição funcionalista como detonador emocional para a melhoria moral da sociedade, não deixará de estar presente em muitos casos muito embora o escritor do século XIX estivesse bem longe de imaginar os caminhos que a Arte entretanto haveria de percorrer. 

As reflexões de Tolstói acabariam por constituir as bases da «teoria da expressão», uma teoria de arte que se fundava numa definição pragmática da arte e que continua a ser alvo de debate animado.

Não deixa de ser interessante procurar a origem etimológica do adjectivo “contemporâneo”. Descobre-se então que provém do latim, “contemporanĕu” e que resulta da união dos termos “com” (junto) e “tempus” (tempo), ou seja, uma simultaneidade entre entidades de tempo ou época. Curiosamente, aquilo que acontece no nosso tempo surge-nos, muitas vezes, como de difícil entendimento e aceitação.

Para Eduardo Lourenço, a Arte não era só “o que se vê”, mas aquilo que se experimenta quando se vê considerando que a pintura fazia parte de uma experiência estética profunda. E o crítico de arte, Augusto França, considerava a Arte como algo vital, que se colava na sua vida como uma pele invisível e por isso, para ele, a Arte não era um objeto desligado, mas algo presente, vital e exigente. Sublinhe-se que dele não se conhece uma definição do que é a Arte. Já Alexandre Melo, cineasta, curador, e crítico de arte, considera que “Se um objecto é consensualmente comentado, transaccionado e exposto como se fosse uma obra de arte, então ele é, na sociedade e na situação dada, uma obra de arte. Independentemente da sua conformidade em relação a uma qualquer definição do que seja obra de arte ou mesmo da própria existência de qualquer enunciado explícito dessa definição.»

Considerações à parte, que isto de definir o que é Arte é demasiado complexo para se desenvolver num artigo, o certo é que uma vez mais, a 2ª metade do século XX conhece nova inquietação conceptual. A atitude provocatória já subjazia em anteriores movimentos sobretudo no Dadaísmo, mas agora, principalmente a partir dos anos 60 do século passado, fruto da globalização e de uma galopante evolução tecnológica que abriu caminho a uma multiplicidade de possibilidades, os artistas passaram a assumir como prioridade ou elemento protagonista do seu trabalho, a ideia ou o conceito impulsionador da obra e não tanto a obra final.

Uma nova forma de encarar a arte permitiu uma diversidade não apenas de perspectivas e técnicas como de linguagens artísticas surgindo as performances, os happenings, as instalações e a arte digital, esta última fruto da transformação digital que tem ocorrido nos últimos 30 anos. Mas tão interessante quanto a multiplicidade de manifestações criativas, está o da fusão e do entrelaçar das várias linguagens o que conduziu a uma diluição de fronteiras. As tradicionais distinções entre pintura, escultura, literatura e cinema são agora muitas vezes esbatidas, podendo coexistir numa só obra, em combinações inovadoras, de experimentação ousada com novos materiais e técnicas ou em obras distintas de um único artista que pode optar por diferentes linguagens em conformidade com a ideia impulsionadora. Outra das características da arte contemporânea é a interactividade com o público que passa a poder ser convidado a participar na experiência artística. 

Claro que a mudança de paradigma apresenta-se acompanhado de alguns problemas. Tradicionalmente fomos educados condicionados por um determinado quadro mental e estético que nos leva a reagirmos emocionalmente ao que de imediato nos é apresentado cedendo a um sentimento de repulsa a tudo o que consideramos esteticamente desconfortável e sobretudo incompreensível. Mas, independentemente de não abdicarmos da nossa liberdade de escolha sem receios de juízos acerca da nossa robustez cultural, talvez possamos tentar realizar um exercício que nos permita ultrapassar o aparente. E nesse exercício, quem sabe se descobrimos mais sintonia do que possamos pensar?  Sobretudo nas obras ou realizações que têm abordagens implícitas de ordem social e política, e que procuram despertar a reflexão cultural e identitária, a compreensão da obra visitada torna-se numa questão particularmente pertinente face ao actual fenómeno da globalização que tende a homogeneizar a existência e o pensamento.

Integrando então esta nova forma de fazer e entender o papel da arte, têm surgido diversos movimentos como o da Arte Conceptual que valoriza, como o nome indica, o conceito do que é proposto, promovendo a desmaterialização da arte sendo que a própria execução física da obra se torna secundária dado que, o que é agora fundamental é a apresentação, a sugestão da ideia central.

A obra Uma e Três Cadeiras, do artista norte-americano Joseph Kosuth, criada pelo artista quando tinha apenas 20 anos, é considerada um dos melhores exemplos de arte conceptual  até os dias de hoje, uma das maiores obras da arte conceptual.

Na montagem, podemos ver três imagens: uma cadeira ao centro, ao seu lado direito uma fotografia dela e do seu lado esquerdo um verbete do dicionário fazendo referência à palavra cadeira. Esses três conceitos fazem o espectador refletir sobre o que é uma obra de arte e o papel da representação.

Uma e Três Cadeiras, 1989

O Minimalismo surgiu como uma outra corrente mas, neste caso, a defender a simplicidade levada ao limite do concebível e reduzindo tudo ao estritamente essencial. Para os artistas minimalistas a arte deve ser libertada do excesso para que se possa destacar a pureza das formas, a simplicidade e uso de elementos mínimos para criar um impacto visual poderoso. A “regra” na Arte minimalista é: “menos é mais”, o que significa que os artistas se esforçam para transmitir sua mensagem usando o menor número possível de elementos.  As obras tenderam então a utilizar formas geométricas básicas, paletas monocromáticas e acessórios industriais, como luzes fluorescentes. Este movimento reflectiu-se, a par das Artes Visuais, na Arquitetura, no Design, na Música e na Literatura. 

 Mary Carmen Matias, Aladas, 2014  Museu Nacional Centro de Arte – Reina Sofia 

 Quase em contra corrente temos o Hiper-realismo que se caracteriza pela extrema precisão e atenção aos detalhes, criando obras que são quase indistinguíveis de fotografias de alta resolução. O objetivo é que a obra consiga parecer mais real do que a própria realidade. 

A Instalação artística é um movimento artístico que cria obras tridimensionais transformadoras do espaço em que o espectador se encontra. Diferente das formas tradicionais de arte, como pintura e escultura, as instalações são projetadas para envolver o público de maneira imersiva e interativa, muitas vezes com uma intervenção directa no ambiente em que são exibidas e no espaço físico em que estão situadas. 

The Gates, Christo e Jeanne-Claude, 2005

The Gates, obra de Christo e Jeanne-Claude, em 2005 no Central Park, é um desses exemplos. A Instalação envolveu o posicionamento de 7.503 “portais” metálicos e o desdobramento de mais de 23 milhas de tecido de nylon de cor açafrão sobre eles, criando um corredor colorido ao longo dos caminhos do Parque. A obra representou uma ligação entre a arte e um espaço que, apesar da sua feição e características naturais, não deixa de se inserir num contexto urbano. De acordo com os autores, o propósito da obra era o de criar uma experiência estética de alegria e beleza. Quanto à escolha do calendário para a instalação, colocada durante apenas 16 dias, decorreu do facto de, durante o Inverno (estávamos em Fevereiro), os troncos das árvores estarem despidos de folhas acentuando-se, desta forma um efeito contrastante entre o monocromático das árvores e o tecido colorido. 

Na década de 80 vamos assistir à “reconciliação com a pintura. O movimento “regresso à pintura” retoma esta linguagem, mas sem a pretensão de “inovar pela inovação”. Vamos então reconhecer, nesta fase, referências a estilos anteriores, mas numa visão audaz misturando-os e reinterpretando-os. A pintura deixa de estar ostracizada pela contemporaneidade e é “convidada” a participar apesar de assumir um novo papel que, por vezes, pode assumir-se irónico. “O exercício da referência ou da citação com o passado deixou de ser incompatível com a experiência do novo” como surge no texto de abertura à exposição “Perspectiva: Alternativa Zero, vinte anos depois…” na Fundação Serralves (1997)

Um dos movimentos surgidos neste âmbito foi o da Transvanguarda que nasceu em Itália no início dos anos 80 e defendia o regresso à alegria e às cores da pintura após num certo contraponto em relação ao que tinha havido até aí e que era um domínio da arte conceptual. 

Da Alemanha, chegavam também ecos deste retomar da pintura com o neoexpressionismo. Em centros artísticos como Berlim, Dusseldorf, Hamburgo e Colónia, a arte irá destacar-se pela mão de artistas fortemente influenciados pelo romantismo e expressionismo do início do século XX .

Entretanto, a bad painting, termo usado pela primeira vez pelo crítico norte-americano Marcia Tucker, em 1978, numa exposição no New Museum of Contemporary Art (Nova Iorque), não pode ser entendida de forma literal. Na verdade, não se tratava de “pintura mal feita”, mas de uma reação irónica e provocadora contra as regras da arte erudita e os estilos dominantes da época (minimalismo e conceptualismo). A pintura reinventa-se intencionalmente “desajeitada”, figurativa, expressiva e até kitsch, misturando referências da cultura popular, banda desenhada, graffiti, publicidade, religião e política. Não se trata de um “fazer” diferente pelo diferente, mas sim com o objectivo de questionar a seriedade e o elitismo da arte, abrindo espaço a linguagens visuais mais livres, cruas e experimentais.

Em Portugal o regresso à pintura far-se-á pela criatividade e artistas como Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis (no início da carreira), Graça Morais, entre outros, em diálogo com o clima internacional.

Seja nas Artes plásticas na música ou na literatura a Arte será sempre uma manifestação indissociável da existência humana porque, como nos disse Fernando Pessoa “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta.” 

                                                                              

Paula Timóteo

Paula Timóteo

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