Julião Sarmento (1948-2021) foi um artista plástico que construiu a sua obra de forma integrada com os paradigmas da contemporaneidade, mas com uma assinatura pessoal reconhecida dentro e fora de Portugal. Contrariando a norma de uma estadia artística nos grandes centros de projeção europeia e verdadeiros viveiros de vanguardas, Julião Sarmento entendeu que não era essencial para o seu percurso fazê-lo o que não significava que não tivesse o impulso de viajar e conhecer o mundo. Aliás, numa entrevista concedida em 2017 à historiadora de arte contemporânea, Isabel Nogueira, e a propósito do mapa do mundo que ele conservava no seu ateliê com alfinetes assinalando lugares já visitados ou a visitar, ele confessava desejar ir ainda a muitos sítios como a China, Rússia, Vietname ou Camboja.
Nasceu em Lisboa onde morreu, aos 72 anos. E foi na capital que viveu a euforia da revolução de Abril “A imagem da panela de pressão é perfeita para ilustrar esses tempos. De repente abrimos a panela de pressão e passou-se do 8 ao 80. Do não se fazer nada porque tudo era proibido para um excesso de liberdade. Faziam-se coisas que não eram necessárias só para provar a liberdade. E podia-se fazer tudo. E quando digo tudo, era mesmo tudo.” (numa entrevista 2015)
Frequentou o curso de arquitectura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa entre 1967 e 1974, uma decisão pragmática porque tinha consciência que não era possível sobreviver da pintura “não era suficientemente burro que não percebesse que, em Portugal, seria um suicídio. Por isso fui para Arquitectura. Desisti porque (…) não queria ofender a disciplina, seria sempre um péssimo arquitecto.” (2017).
Aos 20 anos, participa numa exposição de alunos na Escola de Belas-Artes, mas regista-se como início da sua carreira a década de 1970. Atento às novas abordagens e narrativas artísticas, Julião Sarmento vai corporizando correntes e movimentos artísticos existentes. A obra vai sendo consolidada em simbiose com várias linguagens estéticas e artísticas, o que coincidia com o espírito da época quando as fronteiras entre as várias expressões artísticas se diluíram. O que Sarmento fez estendia-se assim por áreas e linguagens diversas como a pintura, o desenho, a escultura, a fotografia, o filme, o vídeo e a performance.
A imagem do mundo, próximo de si, e o efeito emocional que as experiências sensoriais causam terá tido impacto e exercido o seu papel definidor na obra realizada desde um tempo bem longínquo. Na entrevista de 2017 já citada, realizada a propósito da exposição Reel Time, na Galeria Cristina Guerra Contemporary Art, Isabel Nogueira começa por querer saber qual a memória mais antiga do artista e ele relata um episódio passado quando teria apenas meses de idade “recordo de estar ao colo da minha avó, que tinha um pequeno jardim. Eu tinha ainda meses e a vizinha de cima faz “coucou”. Olhei para cima, e pareceu-me que a senhora tinha o rosto tapado com uma espécie de pano de veludo preto. Apanhei um susto tão grande! Foi uma imagem que me marcou e que, de resto, deu origem a uma das performances que apresentei em Serralves [2012], que era uma mulher que corria com um pano preto na cara.”
Se há alguém cuja vida se funde com o fazer Arte, esse alguém foi Julião Sarmento que afirmou claramente que ser artista era o que mais gostava de fazer e nem sequer concebia ser outra coisa “creio que isso (ser artista) não se decide. Acontece e pronto” afirmaria ele em 2017 quando acabara de completar 50 anos de actividade e estava prestes a chegar aos 70 de vida. Anteriormente, em 2015, numa entrevista publicada no IOnline, havia dito que “os artistas não trabalham. Ser artista é uma forma de vida, não é uma forma de trabalho. Todos os dias venho ao ateliê” esclarecendo que essa rotina diária não era encarada como uma obrigação porque não representava qualquer esforço, mas sim prazer “Muitas vezes nem estou a trabalhar em coisas específicas, mas o facto de estar aqui alimenta-me a cabeça. (…) não há um trabalho como artista, há um estar artístico. Ser artista sempre fez parte de mim, é como lavar os dentes” e em 2000 reforçará a ideia ao jornal Público explicando a sua opção de vida numa frase “Ser artista era uma certeza tão grande como andar ou como falar”.
Em 1977, participa na exposição Alternativa Zero: Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea, organizada por Ernesto de Sousa, artista, curador, crítico de arte e professor que defenderá a necessidade da vanguarda, delineando todo um programa conceptual a partir dos seus possíveis sentidos contemporâneos alertando, contudo, que “Não se trata (não deve tratar-se) de imitar ou venerar o-que-se-faz-lá-fora, mas de abordar o que deve fazer-se cá dentro: com as ferramentas modernas e eficientes de um mundo moderno”

Reunião preparatória da exposição Alternativa Zero com Ernesto de Sousa, Julião Sarmento, (?)
Curiosamente, Julião Sarmento nunca viveu fora de Portugal como já referimos. Quando questionado sobre esse facto, Sarmento simplesmente respondeu que não desejava repetir o que, do seu ponto de vista, tinham sido erros dos outros artistas acrescentando que nunca desejara sair do seu país. O seu objetivo era afirmar-se e ser o melhor artista que conseguisse, mas a partir de Portugal, para o mundo. “Nunca quis ser um daqueles artistas estrangeirados que vivem em Paris, mas vêm a Portugal fazer exposições. Sempre preferi ser o que ia a Paris fazer exposições.” (IOnline 2015)
Na obra de Julião Sarmento, o cinema assumiu sempre um papel de inequívoca importância e não apenas em filmes experimentais como também integrando o universo criativo que foi construindo na pintura, fotografia, desenho, montagem de imagens e texto rompendo fronteiras entre as diversas linguagens. Sarmento assumia-se um amante de cinema desde muito novo e muito jovem ainda começou a incorporar o cinema enquanto instrumento de arte.
E havia claramente dois nomes que eram para ele referências incontornáveis como explica em 2017 “Gosto imenso do Antonioni (…) e gosto do Fellini. São absolutamente geniais. Mas identifico-me mais, mesmo enquanto artista, com a obra do Antonioni, porque ele limita-se a mostrar e a não ajuizar ou a moralizar, contrariamente ao Fellini, que mostra e dá-nos a sua opinião sobre uma personagem e, portanto, indicações de como reagir a essa personagem. O meu olhar é mais antonioniano do que felliniano.” Deixando-nos, desta forma, uma clara indicação de que o que pretendia era desencadear no outro que olha a sua obra uma reação livre de pressupostos ou indicações porque a obra libertar-se-ia dentro da alma de cada um. João Silvério, que lhe era próximo e foi responsável por várias mostras do seu trabalho, diria “a aproximação à sua obra determina, em cada sujeito, uma miríade de projecções e sensações – muitas vezes ambíguas – que oscilam entre o encontro com a intimidade individual e o reencontro com o imaginário colectivo. (Ionline 2015)
Para além do cinema, também a literatura exerceu um fascínio sobre Julião Sarmento que elegeu James Salter como um dos que ele mais apreciava tendo escrito o conto “Alexandre” a propósito da obra que iria ser exposta em Nova Iorque.
Se o cinema enquanto ferramenta e linguagem incorporada na obra foi uma constante, o tema Mulher foi igualmente recorrente, mas o artista rejeitava a existência de uma obsessão como alguns entendiam e até considerava uma ideia absurda e reducionista como afirmou em 2017, na entrevista já referida, lembrando que as mulheres eram “historicamente uma inspiração, desde a Vénus de Willendorf, passando pelo Ticiano, Velasquez e pela escola espanhola. A representação feminina deve ser a coisa mais comum – digo eu – na arte. Mas nada mais do que isso”.
Na década de 80 Julião Sarmento irá associar-se ao movimento pós-modernista que se pautará pela ideia do “regresso à pintura” tendo participado na exposição coletiva que, em Portugal, assinala a mudança: Depois do Modernismo, na SNBA em 1983. A sua pintura irá então deixar-se envolver e assimilar uma diversidade de imagens e modos de pintar capitalizando um ecletismo enriquecedor e em concordância com a visão da época. O artista recordaria mais tarde o que era o sentimento generalizado na época “procurava-se de facto o espírito do tempo e todos andávamos à procura do mesmo, por coincidência. A arte é uma linguagem e, como qualquer linguagem, precisa de ser adaptável à sua existência e ao seu próprio tempo”. Apesar deste reconhecimento de que a arte necessita ser adaptável ao seu tempo, Sarmento tinha a clara percepção de que nem sempre surgia uma conexão entre a obra e o público seu contemporâneo, ligação essa que, especialmente nas últimas décadas, se tinha tornado ainda mais difícil. Em 2015 na entrevista ao Ionline de que já fizemos referência, falaria da necessidade de uma aprendizagem de olhar a arte “Há uma espécie de educação estética que, às vezes, pode ser uma coisa inata. Mas também tem muito a ver com o próprio interesse das pessoas. A compreensão da arte é uma coisa visual, mas se a pessoa tiver alguma bagagem e conhecimento por detrás, essa visão é diferente. Tal como uma pessoa que vê mal, se não tiver óculos, vê na mesma, só que vê desfocado”.
Em estreita concordância com os movimentos contemporâneos e as experiências e entendimentos artísticos, para Sarmento também era o conceito e a ideia que despoletavam a realização da obra se sobrepunham relativamente a ditames estéticos mais consensuais e fáceis de reconhecer. Observava o seu mundo e o dos outros e depois trabalhava exaustivamente a ideia emergente dessa vivência. “Os materiais e as técnicas eram secundários. A ideia era o fundamental.” (2015) tudo o resto, cinema, desenho, pintura, escultura são entendidos por Sarmento como instrumentos para veicular ideias. O que interessava era mesmo chegar ao destino que era a ideia.

Being Forced into Something Else, 1981
A questão da estética interessava-lhe, mas não assumia o protagonismo “A estética faz parte das coisas, mas não está acima de tudo. Está lá. Eu gosto muito de fazer coisas que estejam esteticamente erradas. Interessam-me as coisas que são quirky, estranhas. É muito fácil fazer uma pintura certa, em que tudo funciona. Mas isso a mim não me interessa. O desequilíbrio é o que me interessa. Interessa-me muito mais o desequilíbrio do que as coisas estáveis. As coisas muito estáveis e certinhas não levam a lado nenhum a não ser a uma pasmaceira de café com leite. Interessam-me muito mais as coisas que estejam à beira do precipício.” (2015). Aliás eram as questões, as perguntas mais do que as respostas que Sarmento desejava criar no público fazendo da sua obra um campo que se abre para múltiplas inquietações e dúvidas e não algo de fechado em respostas e certezas pré oferecidas, a tal “pasmaceira do café com leite”. Julião Sarmento, que assumia o seu trabalho como sendo um trabalho culto e erudito, também defendia que era um trabalho aberto a múltiplas possibilidades de recepção e leitura por parte de quem dele se aproxima. Curiosamente, há muitas obras sem título e as que o têm são apenas “mais uma pincelada na pintura e nunca uma ilustração ou descrição” como explica numa entrevista dada em 2016 para a ARTLOAD uma plataforma colaborativa internacional sobre arte contemporânea. Da mesma forma, a fama não terá sido nunca o que mobilizava e interessava Julião Sarmento apesar de se ter tornado um dos poucos nomes da arte contemporânea com reconhecimento internacional. Realizou numerosas exposições individuais e coletivas em todo o mundo, representou Portugal na 46ª Bienal de Veneza, em 1997, acontecimento que Sarmento consideraria da maior importância, foi incluído na Documenta 7 (1982) e Documenta 8 (1987), na Bienal de Veneza (1980 e 2001), e na Bienal de São Paulo em 2002 além da sua obra figurar em muitas coleções públicas e privadas na América do Norte e do Sul, Europa e Japão. Mas para Sarmento o que sempre o entusiasmou era conseguir fazer “o trabalho, da melhor forma possível, e que ele chegasse ao maior número de pessoas.”(Entrevista ao Expresso, 2016). Para issotrabalhava intensamente no seu ateliê que considerava ser o único local possível para concretizar a obra. “Não é na rua, não é no café, não é a falar com pessoas. É no estúdio. É a trabalhar.” (RTP, Falatório com Clara Ferreira Alves, 1998).
Um “fazer arte” solitário não apenas porque o artista visual não depende de nenhuma equipa, somente de si consigo próprio, mas também porque Julião Sarmento necessitava dessa solidão “não consigo trabalhar com ninguém” diria em entrevista em 2016.
Relativamente ao seu entendimento acerca do surgimento do movimento “Regresso à pintura”, Julião Sarmento explicava “Na altura não se podia pintar, porque a pintura estava morta. Sendo a arte, por definição, um exercício de rebeldia, era o momento de voltar a pintar. Por outro lado, o conceptualismo ficou gasto. Tornou-se demasiado pensado, aborrecido, tinha perdido a espontaneidade, até a graça. Deixou de haver surpresa. E sentíamos que tínhamos de nos espantar, de nos surpreender, de ter o gesto que o Velasquez tinha quando fazia a pata do cavalo assim, e depois apagava e fazia de outra maneira. E isto estava a ser impossível.” (2017)
Ou seja, havia demasiada racionalização no “fazer arte” e isso tinha sido um golpe fatal na magia que ela deve conter. Aliás, o seu fascínio pelo mistério era assumido não apenas ao observarmos a sua obra, mas pela voz do próprio artista que, em entrevista à Renascença, em 2018, admitiria sentir uma grande atração pelo mistério e pelo que era o seu desconhecimento. “Interessa-me muito saber as coisas que não sei, algumas coisas que não sei e tentar descobrir coisas que eu jamais pensei que iria descobrir”. A arte seria assim a forma de dialogar com o desconhecido, tentando a sua descodificação. E era nesse processo que o encanto fascinante da arte se cumpria.
“Se as pessoas não têm curiosidade pelas coisas, se não ficam fascinadas por aquilo que é misterioso, o que é que resta?”, questionava, na altura, Julião Sarmento.
Após o regresso à pintura nos anos 80, Sarmento começa uma fase marcada pela opção do branco e preto em detrimento de outras cores além de uma diminuição de elementos decorativos. Há assim uma espécie de ascetismo, de depuração numa demanda pela pureza e simplicidade narrativa. Prefere a insinuação do que não é totalmente revelado. Surgem então as “Pinturas Brancas” dos anos 90.

Julião Sarmento irá trabalhar um caminho onde se assiste à fragmentação da imagem ou mesmo, no caso do corpo humano, desmaterialização quase absoluta. As cores aparecem, mas exercem um papel de destaque pontual ou de contraste, não assumindo um papel protagonista.

Abstracto, 1997
Quanto aos temas, os da sedução, desejo, sexualidade, mas também os de tempo/memória permanecem ao longo do seu percurso. O crítico e historiador Pedro Lapa sintetizava Sarmento como “Um artista do desejo, que apesar de ter escolhido outros meios, que não tanto os tradicionais, também foi um grande pintor, um dos maiores pintores do século XX português”. Na vasta obra de Julião Sarmento encontramos também a influência da literatura e do cinema, como já mencionado, não só no conteúdo, mas também no ritmo visual, nas sobreposições, na narrativa implícita. Nas exposições mais recentes, inclusive a antológica “Abstrato, Branco, Tóxico e Volátil”, “Sarmento quis dar sequência à sua estética de sobriedade, de jogo entre dissimulação e revelação, entre o visível e o oculto. Muitas obras em negro e branco, com raríssimas cores fora do contexto de contraste.” (revista Visão sobre a 1ª exposição realizada, após a morte de Sarmento, no Museu Coleção Berardo, 2022). Também a disposição e curadoria das exposições reflectem muito daquilo que ele queria até porque o artista participou no layout, na sequência expositiva, no modo como as obras se relacionam no espaço, não só como objetos isolados, mas como partes de um percurso temático intimista.
Terminamos com as palavras de quem já nasceu artista. Julião Sarmento, que faria este mês 77 anos, foi um homem que cresceu num mundo de adultos (filho, neto e sobrinho único numa casa onde não havia crianças com quem brincar) e que encontrou na pintura e no desenho o seu cantinho do universo onde era feliz.
“(…) é óptimo quando alguém vem ter comigo a dizer que adora o meu trabalho. Jamais alteraria um milímetro do meu trabalho só para agradar às pessoas, mas se as pessoas gostarem daquilo que faço, é óptimo. Não sou do género de dizer que não quero que gostem de mim. Eu quero que gostem de mim, gosto que gostem de mim.” (2015)
Paula Timóteo

