O filho é meu!
Quantas vezes já ouvimos (ou lemos) isto?
Quantos de nós terão sido já atingidos por este murro verbal, repetido como uma máxima délfica, em crescendo de tom ao longo dos últimos anos?
Afirmarmos a nossa relação parental com os nossos descendentes não oferece dúvidas e, por isso, quando os apresentamos ou falamos deles dizemos “os meus filhos” usando assim o determinante possessivo com a ideia de ligação maternal ou paternal, “ele descende de mim” e nada mais do que isso. Havia até uma expressão, muito ouvida em tempos idos, que referia os filhos como os “herdeiros”. Por norma, esta forma de os pais se referirem aos filhos estava intimamente ligada à parte mais pragmática da vida, a herança material que caberia ao filho por morte dos pais. Esqueciam-se assim outros significados mais vitais como o do código genético, o capital moral, ético e cultural que passa inevitavelmente de pais para filhos e são assim a herança mais poderosa. Ou seja, se quisermos ser ainda mais literais, quando dizíamos “o meu herdeiro” estávamos a dizer que dele seria a posse das nossas coisas. Nada que se assemelhe ao sentido de: “o filho é meu”.
Por isso, quando ouvimos alguém explodir “o filho é meu!” estamos num outro registo, pouco amável e afectuoso porquanto que nada de carinhoso existe numa afirmação de posse acentuando silabicamente a convicção de que o filho lhe pertence. É um outro patamar conceptual, outra intenção e outras razões lhe subjazem.
Recentemente, a antropóloga Francesca Messenzana publicou no site Aeon um ensaio intitulado “Puericultura Amazônica” onde partilhou as suas reflexões sobre a educação das crianças nomeadamente desde os primeiros momentos. O seu trabalho resultou da sua própria experiência já que desde que foi mãe tem passado temporadas com o povo Runa numa aldeia da Amazónia. E foi ali, entre um povo conectado com a Natureza e que vive o conceito de comunidade na totalidade da sua dimensão que ela percebeu que “o filho pertencia a todos, não apenas a mim”.
Os filhos não são de facto objetos de pertença, nem troféus que se ostentam. A parentalidade é uma responsabilidade que compete a todos. E por “todos” devemos entender a família alargada, a comunidade, o mundo. Ser pai ou mãe é uma jornada de viagem única, sem livro de instruções nem receitas mágicas. Não existe forma de se saber se em determinado momento estaremos a tomar as decisões mais acertadas em relação ao nossos filhos, mas nunca devemos esquecer que gerar um filho não é produzir um bem que nos pertence. Ele não é nem nunca será um qualquer objeto ou património material.
O provérbio africano que diz que é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança, mostra-nos, à semelhança do que Francesca aprendeu na Amazónia, que todas as mãos, olhares e colos são bem-vindos no crescimento harmonioso de uma criança tal como os conselhos e partilha de experiências dos mais velhos, sobretudo do manancial de vivências transmutadas em conhecimento ao longo da vida. Por vezes (e quantas vezes isso acontece?), é no seio de comunidades menos complexas que encontramos o olhar mais cristalino e clarividente sobre a vida. Um entendimento não contaminado por medos e certezas equivocadas, sobre o que deve ser naturalmente o crescimento de uma criança.
Houve um tempo em que era comum várias gerações coincidirem na mesma casa e a ideia de uma criança educada nesse mar fecundo e diverso era banal. Tal como era consensual a convicção de que a voz dos anciãos devia ser escutada. Não num exercício desinteressado de audição, mas num genuíno interesse e busca de estratégias e respostas porque a eles pertencia um caminho de experiência que não podia ser desperdiçado. Hoje esse lugar de família alargada passou a ser uma raridade no chamado mundo ocidental e parece haver, ao invés, uma tentativa de abolir qualquer tipo de influência e envolvimento.
Hoje é muito vulgar a admoestação “não se meta porque o filho é meu!” e as queixas e lamúrias sobre a suposta devassa na educação dos netos e da abusiva intromissão na educação parental dos netos e bisnetos, pululam nas redes sociais e artigos de opinião.
Para além deste enfado em torno do papel que os avós possam ter na vida dos seus descendentes, há ainda a visceral reação a algum reparo que possa surgir vindo da comunidade.
Recentemente uma jovem mãe indignou-se com os alertas que terá recebido depois de publicar, inchada de alegria e orgulho, o primeiro brigadeiro dado ao seu filho, um bebé de pouco mais de 1 ano. “O filho é meu e por isso eu é que decido o que ele deve ou não comer!” apressou-se a dita jovem a vociferar do alto dos seus microfones virtuais, com veemência jurídica e sabedoria exultante.
Talvez não aconteça nada de mal à criança e talvez a mãe da inocente criatura tenha, entretanto, um rebate de consciência e entenda que o chocolate não é mesmo nada aconselhável para crianças tão pequenas por uma série de razões. Talvez…. mas seria talvez aconselhável alguém explicar a esta mãe que a maternidade, só por si, não a tornou milagrosamente menos ignorante. Antes pelo contrário. Quando os filhos nascem, em simultâneo nasce nos pais um oceano de dúvidas e inseguranças porque se confrontam com uma realidade absolutamente nova. Por isso se torna tão essencial ouvir a tal “voz da experiência” um saber empírico que não deve ser descartado e preterido aos muitos livros que, como cogumelos, crescem nas prateleiras de livrarias dando conselhos. Há obras boas, outras razoáveis e inócuas, mas muitas outras bastante discutíveis. Ler de forma criteriosa é muito bom, aconselhar-se com os profissionais de saúde é fundamental, mas ouvir os conselhos e alertas da “aldeia” onde vivemos torna-se o ingrediente mágico que pode fazer a diferença.
“O filho é meu” e “Eu é que sei” são duas frases reveladoras do que pode ser um erro convictamente bramido como certo. Nem um filho é pertença de alguém nem o saber está nas mãos exclusivas da parentalidade.
Paula Timóteo