Estamos numa aula de História e é dia de entrega das fichas de avaliação. A professora aproxima-se de um aluno e entrega-lhe o teste. O jovem sobressalta-se e pergunta estupefacto: “tenho zero? Como assim? Respondi a tudo e o teste correu-me bem…” . Então, a professora respira fundo e esclarece o que havia já esclarecido, alertado, avisado, repetido até à exaustão “pois, mas o que escreveste é ilegível e se não consigo ler o que escreveste não posso avaliar as tuas respostas”.
A cena descrita não é inteiramente ficção. Inspira-se na realidade e só não é literal porque os professores lá conseguem, em muitos casos, decifrar alguma coisa. Mas o essencial está ilustrado. Nos últimos anos, talvez até décadas, a perda de competências ao nível da escrita não se tem limitado aos erros ortográficos de fazer corar as pedras da calçada, ou à construção frásica desconexa destituída de qualquer lógica ou significado, um fenómeno preocupante até porque revela uma ausência de capacidade crítica por parte dos alunos que não reconhecem o total incumprimento das regras básicas de uma frase. De facto, os problemas não se têm ficado apenas nessa esfera porque a correcção caligráfica parece ter deixado de ser uma preocupação institucional ou social a que não é alheia a ideia de que vamos todos por acabar por escrever nos teclados e por isso a escrita manual tem os dias contados. Mas a esta convicção contrapõem-se estudos científicos que demonstram a importância da escrita manual no desenvolvimento cognitivo em oposição à escrita através de um teclado onde já estão colocadas letras que apenas esperam que dedos diligentes as pressionem. Uma espécie de exercício digital que, mais tarde ou mais cedo, se torna algo quase automático
Vários autores têm evidenciado que a escrita manual assume um papel significativo no desenvolvimento do cérebro, especialmente em fases cruciais de crescimento e aprendizagem. Graças a testes e imagens recolhidas através de ressonâncias magnéticas, investigadores da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, concluíram que escrever à mão é um processo que está ligado à activação de áreas específicas do cérebro estimulando mais conexões cerebrais e favorecendo a aprendizagem.
Alexandre Castro Caldas, neurologista do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, explica que “quando escrevemos à mão, a palavra que imprimimos no papel está memorizada como um todo, como símbolos, sai como uma unidade única de significação”.
“Quando utilizamos o computador, o cérebro processa letra a letra, com base numa memória visual dos caracteres que se quer teclar. Na base está o acto de soletrar, um processo mais lento.”
Por outro lado, sabe-se que a escrita à mão melhora a plasticidade do cérebro com ganhos importantes no desenvolvimento de outras capacidades cognitivas como a memorização ou a expressão de pensamento de uma forma mais eficaz e coerente.
“A escrita à mão é uma habilidade que deriva da arte de traduzir ideias e palavras numa linguagem gráfica legível”, define também o neuropsicólogo e presidente do Instituto da Inteligência, Nelson Lima.
Investigadores como o neuropsicológo João Anacleto, do Instituto do Cérebro, têm defendido, por seu lado, que a escrita manuscrita promove mais concentração, porque é mais lenta, exige atenção e maior elaboração mental para traduzir por palavras pensamentos. O favorecimento da concentração tem, obviamente, repercussões na interiorização da informação patamar essencial à aprendizagem e capacitação.
Assistirmos em cada ciclo de ensino a um declíneo claro e inequívoco de competências que deveriam estar consolidadas é assustador e não deve ser encarado de uma forma unívoca. O problema é real e nem a narrativa institucional que advoga uma escola mais inclusiva consegue evitar a constatação óbvia de um decréscimo no aproveitamento real dos alunos. Uma escola inclusiva não é uma escola sem exigência. Os alunos merecem ser encorajados a gostar do conhecimento e a serem mais curiosos resilientes, produtores de pensamento crítico e criativo. E a valorização da caligrafia tem um papel a desempenhar nesse desígnio até porque não será por acaso que o empobrecimento do nível académico no ensino básico tem vindo a par com a perda de qualidade no desempenho da escrita à mão.
Paula Timóteo