O coleccionador faraónico

O coleccionador faraónico

O português que mais colecções constituiu e diversificou foi Ernesto de Vilhena, oficial da armada e presidente da Companhia dos Diamantes de Angola. A sua colecção tornou-se lendária no mundo das antiguidades.

Um livro da autoria de Maria João Vilhena de Carvalho, historiadora e conservadora da colecção de escultura do Museu de Arte Antiga, fornece-nos dados fundamentais sobre o comandante Vilhena.

A autora investigou durante anos a sua complexa personalidade. Uma tarefa morosa e complexa. A maioria das pessoas que privaram com ele já desapareceram, quer a nível familiar, quer a nível de antiquários e angariadores de obras de arte.

O neto de Ernesto de Vilhena, Manuel, e a nora Maria dos Prazeres, apoiaram a iniciativa com depoimentos orais e com o empréstimo do espólio do colecionador. Neste, completamente desconhecido, encontram-se fotografias, um exaustivo diário, cadernos de viagem e notas de compras a antiquários e a intermediários de norte a sul de Portugal. A historiadora pode relacionar as colecções hoje no MNAA e os locais das suas proveniências.

Desde 1922, Ernesto de Vilhena começou a coleccionar vastíssimos e riquíssimos espólios. O seu acervo artístico compunha-se de 60. 515 peças – artes decorativas, plásticas e biblioteca – sendo totalmente preservado na no palacete da Rua de São Bento, em Lisboa. O conjunto tinha 5837 cerâmicas, 3443 têxteis, 1059 metais, 182 leques, 2419 esculturas, 530 marfins, 526 pratas, 1039 móveis, 9639 azulejos, 191 cruzes, 2065 vidros, 236 pinturas e 354 diversos.  Trata-se da maior colecção jamais constituída em Portugal. O MNAA, principal instituição do género entre nós, detém actualmente 45 mil peças.                                                      

O chamado Palácio Vilhena, na Rua de São Bento, constituído por cerca de 50 divisões, estava completamente cheio. A biblioteca encontrava-se no piso térreo, e as restantes obras de arte espalhavam-se por todo o espaço.

Ernesto de Vilhena apreciava especialmente as secções de escultura portuguesa e de têxteis – colchas de Castelo Branco e indo-portuguesas – guardadas em arcas.

No jardim do imóvel preservavam-se valiosos azulejos e rústicas esculturas em granito, parte delas fragmentadas.

Ao falecer em 1967, com 91 anos, deixou uma enorme colecção aos herdeiros, mas pouco capital. Conta-se que pretendera fazer uma fundação. Antes de morrer  recebeu a visita de Salazar que lhe insinuou ser tempo de abandonar a presidência da Companhia dos Diamantes de Angola. Furibundo, o colecionador  rasgou o testamento.

A família realizou os primeiros leilões em 1969 e adquiriu, com essa verba, um prédio na Avenida de Roma.

A maioria das esculturas, 1503 peças nacionais e de Malines dos séculos XIII a XVIII, encontra-se actualmente, e por doação da mulher e do filho, no Museu Nacional de Arte Antiga. Esse acervo foi conseguido de norte a sul de Portugal através de viagens e de inúmeros intermediários. Na época da entrega ao Estado as esculturas foram avaliadas em 24. 147 contos, o que deve equivaler a dezenas de milhões de euros na actualidade.

A biblioteca dos descobrimentos, uma das melhores em mãos privadas, constituída por 2574 volumes, foi vendida em 1969 a Jorge de Brito por 26 mil contos. O banqueiro e os herdeiros dispersaram-na em leilões realizados na Alemanha em 1989, e em Portugal entre 2008 e 2009. Rendeu cerca de 5 milhões de euros. A Biblioteca Nacional conseguiu adquirir alguns dos principais volumes.

A colecção de arte que Ernesto Vilhena deixou acabou por ser leiloada entre 1969 e 2001. A biblioteca corrente (18288 volumes) foi transaccionada entre 1998 e 1999.

Os primeiros leilões não tiveram sequer um catálogo, neles foram dispersos colecções de vidros, marfins indo-portugueses, pratas, metais, cerâmicas e têxteis. A família negociou, ainda, com importantes antiquários milhares de lotes. O Estado adquiriu por 300 contos 26 tecidos Coptas dos séculos V a IX e 468 fragmentos dos séculos XIII a XIX. O conjunto estava em risco de dispersão, sendo salvaguardado por iniciativa de Maria José de Mendonça, então directora do MNAA.

Em anos recentes o Instituto Português de Museus adquiriu em sucessivos leilões realizados em Lisboa o tríptico quinhentista “Calvário” de Frei Carlos e uma imagem setecentista de Nossa Senhora da Conceição para o MNAA, bem como painéis cerâmicos para o Museu Nacional do Azulejo.

A Fundação da Casa de Bragança comprou um par de cómodas francesas assinadas por Mondon e uma arca indo-portuguesa, obras expostas no Paço Ducal de Vila Viçosa.

O Vitória and Albert Museum adquiriu privadamente a quase totalidade das colchas de Castelo Branco e as melhores esculturas indo-portuguesas em marfim.

As mais raras porcelanas orientais foram leiloadas em Londres.

A viúva do colecionador doou móveis sacros ao Museu do Caramulo, a arca dos Gamas ao Museu de Marinha, e um conjunto de 12 colchas de Castelo Branco ao Museu Francisco Tavares Proença. A nora doou recentemente uma imagem policromada setecentista representando Santa Maria ao Museu Grão Vasco.

O palacete de São Bento, precioso pelo recheio e recordações, acabou por ser transaccionado no início do século XXI, decisão tomada pelo neto e pela nora que vivem entre o Estoril e a Áustria. O interior do imóvel foi demolido e transformado num condomínio. Hoje nada recorda a passagem de Ernesto de Vilhena pelo local.

António Brás

António Brás

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *