Legados e doações enriquecem o Estado
1ª Parte
Centenas de milhões de euros são, em estimativa, o valor do património cultural, que inclui obras de arte, doado nos últimos 150 anos ao País por privados. Para o fazer, estes secundarizam muitas vezes descendentes e outros familiares
Acentuou-se entre nós a tendência para se legar fortunas e valores pessoais a museus, palácios, misericórdias e instituições de prestígio. Os que assim procedem pretendem manter intactas as colecções que juntaram e amaram (sentimento não assumido pelos herdeiros), bem como perpetuar o seu nome e memória.
Durante séculos foi a igreja a principal contemplada com tais legados, o que lhe permitiu tornar-se detentora de mais de 60% do património cultural português. Mas com o liberalismo, após 1834, a tradição quebrou-se. Uma das personalidades que mais (e primeiro) contribuíram para a mudança foi o Conde de Carvalhido que entregou ao então Museu de Belas Artes, em 1898, um conjunto de 91 pinturas, onde se destaca a “Salomé” de Lucas Cranach, uma obra essencial no Museu de Arte Antiga. É, aliás, esta instituição que detém os mais relevantes conjuntos de doações e legados.
A implantação da República, em 1910, e a onda de anticlericalismo que se lhe seguiu dilataram o fenómeno. Grandes colecionadores ligados à cultura, à finança, à filantropia (alguns deles estrangeiros) optaram por deixar nas mãos do Estado acervos de indizível valor. Contam-se entre eles Guerra Junqueiro (pintura portuguesa e europeia dos séculos XV ao XVIII), Luís Fernandes (3 mil porcelanas portuguesas, orientais e europeias), condessa d`Edla (pintura portuguesa e europeia, escultura e prataria), Augusto Rosa (mobiliário português e francês, móveis, têxteis e esculturas indo-portuguesas), e Tília Machado Nogueira (faiança e mobiliário nacionais).
Grandes doações e legados
Os conjuntos de maior destaque foram, no entanto, deixados por Calouste Gulbenkian (esculturas da antiguidade clássica, azulejos persas, pinturas de Van Cleve, Van Dyck, Nicolas de Largillière, Joshua Reynolds, John Hoppner, Hubert Robert, Courbet, Dupré) e por Antenor Patiño (salão Luís XV, composto por apainelados, canapé e cadeiras, lustre, relógio e candelabros em bronze e porcelana e tapete proveniente de Versalhes) que se guardam no Museu de Arte Antiga.
No Porto, o Museu Soares dos Reis recebeu, nos anos 40, um legado de Maria Teresa Chagas composto por um prédio situado no Estoril, cuja renda foi, durante décadas, aplicada no enriquecimento das suas colecções. Vendido o imóvel, os responsáveis pelo museu adquiriram com esse capital a tela “Bonecos de Barcelos”, umas melhores obras de Eduardo Viana.
E o médico Anastácio Gonçalves, que dedicou a vida a colecionar porcelana azul e branca da China, pintura naturalista portuguesa e mobiliário europeu, legou-os ao Estado, bem como a moradia onde habitava, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa, hoje transformada em casa-museu.
No último meio século, sobressaem os legados ao Museu de Arte Antiga de Ernesto Vilhena (1503 esculturas portuguesas e de Malines dos séculos XIII ao XVIII), de Francisco Barros e Sá (todo o recheio da casa, destacando-se 503 peças de ourivesaria civil portuguesa e o incunábulo “Crónica de Nuremberga”), de Maria Luísa Diley Pina Moutinho (mobiliário português, francês e russo, e pinturas de mestres franceses e holandeses, destacando-se “A Toilette de Venus” de Boucher), da família Rau (gravuras com caricaturas inglesas e francesas sobre Portugal), de Alfredo e Carolina Travassos (160 jóias portuguesas dos séculos XVII ao XX), e de Dinorah de Castro Pina (acervo de casa de Lisboa, destacando-se pratas e faianças portuguesas e móveis, colchas e imaginária indo-portuguesa).
O Arquivo Distrital de Bragança recebeu, por sua vez, o espólio da família San Payo (abrangendo espécies documentais dos anos 683 a 1901), e a Câmara Municipal de Coimbra a colecção do médico Telo de Morais, avaliada em cinco milhões de euros, que deu origem ao Museu da Cidade e na qual se evidenciam pintura portuguesa dos séculos XIX e XX, terracotas chineses, porcelana da Companhia das Índias e da Vista Alegre, pratas setecentistas e esculturas sacras.
O Museu do Chiado viu enriquecido o seu acervo com obras que cobrem todo o século XX. A viúva de Bernardo Marques deixou-lhe o espólio do marido, e a neta de Veloso Salgado, Maria da Conceição, legou o acervo artístico do avô e de Ferreira Chaves, bem como o recheio das casas de Lisboa e Colares.
O Estado recebeu um grande número de óleos, desenhos e documentação relacionado com duas figuras das artes plásticas dos séculos XIX e XX.
Na sua casa de Lisboa, um dos raros ambientes oitocentistas ainda existentes, predominavam os móveis Império, retratos a óleo da família, prataria, cerâmicas e têxteis.
A casa de Sintra, outrora um hotel, tem igualmente um acervo pictórico apreciável.
O apartamento da capital foi desfeito, a legadora vendera o imóvel antes de morrer, enquanto a de Sintra reverte para o Estado.
Para homenagear a memória da mulher, Gestrudes Verdades de Faria, o multimilionário Enrique Mantero Belard deixou à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa acções e capitais, bem como a ampla moradia no Restelo (hoje lar de artistas) e o respectivo recheio – onde sobressai o óleo “A Felicidade da Regência de Maria de Médicis” da escola de Rubens, e à Câmara Municipal de Cascais a moradia de veraneio, no Monte Estoril, relevante obra de Raul Lino. Aquele município transformou-a no Museu da Música Popular Portuguesa, engrandecido com o espólio legado por Fernando Lopes-Graça.
A Misericórdia de Lisboa recebe frequentemente enormes legados, avaliados anualmente em 2, 5 milhões de euros, onde se incluem obras de arte. Destacamos nos últimos anos as heranças de Maria Teresa Alves com o espólio do gráfico Rodrigues Alves; a de Eduardo Correia de Sá com 200 óleos e desenhos de Eduardo Malta e a de Delmira Maças com imaginária indo-portuguesa e numismática.
As açorianas Natália Correia (por nascimento) e a Condessa de Cuba (por família) entregaram ao seu arquipélago o espólio literário, a primeira, e o pictórico (telas do pintor setecentista Morgado de Setúbal), acervos hoje na Biblioteca Pública e no Museu Carlos Machado, em Ponta Delgada. A aristocrata havia já doado ao Patriarcado de Lisboa a Capela do Rato, palco, em 1973, de uma histórica vigília contra a guerra colonia.
Dignos de nota são, ainda, o de Teixeira Gomes, escritor, diplomata e presidente da república, que ao contrário do que é tradicional espalhou pinturas do Visconde de Meneses e Columbano pelo Museu Soares dos Reis; telas da escola inglesa e francesa pelo Museu Chiado; mobiliário português e uma rara “Vista da Torre de Belém” de John Thomas Serres pelo Museu da Cidade de Lisboa; pinturas flamengas e uma arca holandesa pelo Museu de Arte Antiga; um retrato seiscentista de D. Catarina de Bragança pelo Museu dos Coches e um par de samovares pelo Museu Castro Guimarães.
Ao longo da vida, Salazar (outra referência) foi oferecendo a museus portugueses os presentes que recebia. A pintura “O Veado Acossado” de Jean Baptiste Oudry expõe-se no Museu de Arte Antiga; o quadro “São Bernardino de Siena” de Quintin Metsys está patente no Museu do Caramulo; a tapeçaria flamenga com as armas de Dom Manuel I ornamenta o Palácio Nacional de Sintra, e uma colecção de peças egípcias (que o estadista declinou a Bustorff Silva) integra o acervo do Museu Nacional de Arqueologia.
Os restantes juntou-os numa dependência no sótão do palacete que habitava em São Bento. Eram, na sua maioria, peças preciosíssimas (algumas em ouro e cravejadas com safiras e diamantes) que desapareceram após ele ter morrido. A sua governanta, Maria de Jesus Caetano, ordenou-as e agrupou-as metodicamente, ajudada por Mavilde Aráujo, empregada da casa (ainda viva). As duas entregaram a chave da sala onde aquele tesouro se encontrava aos responsáveis, na altura, pela Assembleia Nacional. Investigações feitas para reencontrar as peças mostraram-se, no entanto, infrutíferas.
São Schlumberger doou um conjunto de 25 peças assinadas por Yves Saint-Laurent, Givenchy, Pierre Balmain, Christian Dior, Valentino e Grès ao Museu do Traje. É o único núcleo de alta-costura da instituição. A doadora nasceu em Portugal, mas viveu quase toda a vida em Paris, foi durante anos a mulher mais bem vestida do mundo, e um dos grandes mecenas do Centro Pompidou, do Palácio de Versalles e do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.
António Brás