Educação I O analfabetismo ganha terreno
“Professora, eu não sei ler nem escrever”. Quem o afirma é uma aluna portuguesa do 5º ano, mas que devido ao seu elevado absentismo escolar no 1º ciclo não conseguiu cumprir o que deveriam ser objectivos básicos a alcançar na primeira etapa da escolaridade. Surge inevitavelmente a questão: como é que foi possível ter transitado sucessivamente até ao 5ºano sem ter sido alfabetizada? A resposta é, lamentavelmente, simples: foi possível porque a Escola em geral e os professores em particular cedem, de joelhos no chão, à ditadura das estatísticas que têm de mostrar, a qualquer custo, a bondade das políticas educativas.
Os sucessivos articulados legislativos, principalmente o decreto-lei 54/2018, combinados com uma cada vez maior pressão para transições de ano, pressões mais ou menos evidentes e mais ou menos assumidas pelos docentes, têm conduzido a uma realidade absolutamente inenarrável e absurda que marca actualmente a vida da Escola Pública. O processo que foi criando de forma indelével no espírito docente a “obrigatoriadade” de transitar de ano todos os alunos esteve anos a ganhar terreno até que o decreto-lei 54/2018 deu a machadada definitiva. Apesar da narrativa colorida e simpática do seu texto introdutório onde podemos ler, entre outras pérolas, que “No centro da atividade da escola estão o currículo e as aprendizagens dos alunos”, surgem sinais evidentes de que o compromisso da política educativa é acima de tudo com números simpáticos ostentados nas pautas de final de ano. O centro, a prioridade e o verdadeiro interesse é com os indicadores plasmados em coloridos gráficos e complexas folhas de exel.
Quando no diploma referido, ainda na sua parte introdutória, se afirma que cada escola deve “reconhecer a mais-valia da diversidade dos seus alunos, encontrando formas de lidar com essa diferença, adequando os processos de ensino às características e condições individuais de cada aluno, mobilizando os meios de que dispõe para que todos aprendam e participem na vida da comunidade educativa” o que na prática está a dizer é que se o aluno não atinge as competências esperadas, a Escola deve assumir esse facto como sendo fruto natural da tal “diversidade” e que o que tem de fazer é adequar-se ao aluno baixando expectativas e até eliminando etapas. Ou seja, e traduzido em linguagem pragmática, a avaliação insatisfatória de um aluno mostra que a escola não respeitou a diferença e a individualidade do aluno e reflecte a incompetência dos professores que não souberam aplicar estratégias diferenciadas e pensadas para cada aluno que tenha fraco aproveitamento. Ora, como ninguém quer receber o rótulo de incapaz ou até de ser alvo de recursos e outros aborrecimentos, a inflação nas avaliações tornou-se rapidamente uma prática corrente de maquilhar a situação e os casos de alunos com médias na avaliação na ordem dos 30% /40 % a alcançarem nível 3 em cada período, mas sobretudo no final do ano lectivo, começaram a ser vulgares. Esta realidade, que se tem acentuado nos últimos anos, tem coabitado com recorrentes desabafos, embora inconsequentes, ouvidos em espaços informais acerca de um decréscimo nas competências dos alunos saídos do 1º, 2º e 3º ciclos. E tem sido comum ouvir-se que “os alunos chegam ao 2º ciclo e não sabem ler nem escrever”. Acontece que, até há pouco tempo, quando os professores se alarmavam com o facto dos alunos chegarem aos 2º e 3º ciclos evidenciando fragilidades no domínio do português, referiam-se a comprometimentos que sendo graves e inaceitáveis resultavam em incapacidade de ler e escrever de forma correcta. Ou seja, o “não saber ler nem escrever” não era absolutamente literal. Os alunos não saberem ler traduzia-se, na prática, numa leitura sincopada, sem respeito pela pontuação nem expressividade e quando era referido que não sabiam escrever os docentes estavam a expressar a sua indignação pela forma caótica com que os alunos expunham ideias e construíam frases e pequenos textos. Lamentavelmente, a frase tem ganho substância literal em demasiados casos porque ultimamente chegam às escolas do 2º ciclo alunos que simplesmente não foram alfabetizados. Alguns são provenientes de países, que pertencem aos PALOPs, nações com profundas debilidades no seu sistema educativo a começar pelo acesso à escolarização que a muitas crianças está vedado. Mas há também alunos analfabetos que fizeram o seu percurso em Portugal e que foram transitando de ano mesmo com elevado absentismo e sem alcançar as competências básicas. Talvez faça sentido lembrar o que a Lei de Bases do Sistema Educativo no seu artigo 8º (organização) prevê que seja alcançado no 1º e 2º ciclos:
a) Para o 1.º ciclo, o desenvolvimento da linguagem oral e a iniciação e progressivo domínio da leitura e da escrita, (…)
b) Para o 2.º ciclo, a formação humanística, artística, física e desportiva, científica e tecnológica e a educação moral e cívica, visando habilitar os alunos a assimilar e interpretar crítica e criativamente a informação, de modo a possibilitar a aquisição de métodos e instrumentos de trabalho e de conhecimento que permitam o prosseguimento da sua formação, numa perspectiva do desenvolvimento de atitudes activas e conscientes perante a comunidade e os seus problemas mais importantes;
Ou seja, no 2º ciclo não se alfabetiza, trabalham-se outros patamares da educação escolar no pressuposto que os anteriores foram cumpridos.
Porém, e se por um lado a concepção do que se pretende que a escola construa e alcance pareça evidente e consensualmente organizado por etapas definidas, vão surgindo em paralelo outros diplomas legais destinados a regulamentar áreas específicas da Educação que acabam por abrir espaço a interpretações curiosas que contrariam parte do que parecia consagrado. Não assumindo abertamente o que efectivamente se pretende que a Escola cumpra, os sucessivos governos têm conduzido e instrumentalizado, de uma forma subtil, mas eficaz, os diversos actores da Educação Pública para que, envolvidos em narrativas simpáticas e processos kafkianos, garantam resultados risonhos que espelhem o sucesso das políticas. Mesmo que os alunos cheguem analfabetos ao 3º ciclo. O que efectivamente importa são troféus numéricos.
A Escola Pública tem se distanciado do seu papel essencial como centro de aprendizagem e desenvolvimento de competências e cada vez mais se confunde como um albergue de crianças e jovens que ali passam o tempo fazendo de conta que aprendem e crescem do ponto de vista intelectual e social, enquanto os pais trabalham. Alunos que cedo começam a ter como certo que nem necessitam de se responsabilizar em levar material, nem em chegar cedo, nem em ser assíduo e muito menos estudar porque o salvo conduto está garantido. Alegremente vão subindo degraus virtuais escudados com o que surge no decreto lei 54/2018. Prestemos atenção ao que é referido relativamente à avaliação quando considera necessário ter em linha de conta aspetos académicos, comportamentais, sociais e emocionais do aluno, mas também fatores ambientais uma vez que desse processo resulta toda a sequencialização e dinâmica da intervenção (sublinhado nosso). Repare-se na forma como os aspectos académicos surgem equiparados aos factores ambientais, comportamentais, sociais e emocionais. É que este pormenor tem a relevância que muitas vezes uma simples colocação de vírgula pode representar no significado de uma frase. De facto, os aspectos referidos no decreto acabam por servir de argumentário para sustentar o insólito, visto que avaliar conhecimentos e competências já não é propriamente a prioridade.
Por outro lado, a panóplia de mecanismos que visam, supostamente, dar resposta individualizada aos alunos garantindo que todos alcancem o sucesso escolar resulta num complexo menu que tem as suas linhas orientadoras no Artigo 2.º onde surgem conceitos interessantes como «Acomodações curriculares»; «Adaptações curriculares não significativas»; «Adaptações curriculares significativas». A introdução destes conceitos nas dinâmicas burocráticas das escolas obrigam a que cada escola elabore documentos extensos, redundantes, patéticos com listas de práticas pedagógicas e onde surgem, a par de muitas que já se cumprem há décadas, outras impraticáveis. E são exactamente estas que no caso de não serem cumpridas, sustentam a transição de alunos com base na tese de que o professor não esgotou todas as estratégias contempladas.
Até quando a Escola e o país aguentarão as sucessivas camadas de maquilhagem que não conseguem esconder o triste facto de a Escola caminhar nua? Despida de si própria e da sua essência apesar de coberta com um manto legislativo, a Escola não está a realizar um bom trabalho e o futuro afigura-se muito comprometido.
Paula Timóteo