Marieta Miguel I A Natureza na Tapeçaria
A tapeçaria é uma cumplicidade entre a artista e o real que sofre uma transformação no seu imaginário e ganha forma
Ana Isabel Martins
Marieta Miguel é uma artista que escolheu a tapeçaria como o seu universo criativo. Perguntamos-lhe desde quando e o seu olhar perde-se no fio da memória até um momento que não consegue identificar talvez porque se funde com o tempo em que começou a observar os espaços amplos de natureza generosa onde nasceu. Aljustrel, onde passou parte da sua infância e para onde continuaria a regressar nas férias mesmo depois da mudança da família para Lisboa, é a sua terra, o lugar povoado de dias felizes e muita vida.
Cedo começou a revelar uma apetência para a criação artística como se a infinitude dos largos horizontes dos montes alentejanos a convidassem a uma viagem sem amarras, a uma constante procura de produzir o que ainda não tinha sido feito. A observação do que era feito na oficina da sapataria do pai, de onde saíam modelos concebidos pelo próprio, é reconhecido por Marieta como uma experiência que terá tido impacto no seu interesse pela arte e pela busca inventiva da criação. De igual forma da mãe terá herdado a destreza e habilidade manual apesar de num campo diferente “a minha mãe fazia renda, crochet, mas eu achava o crochet muito monótono. O que eu gostava mesmo era de inventar”.
Caso único na família, Marieta diz-se influenciada pelas cores da sua terra, uma região onde o sol é mais sol e a terra mais viva e intensa “gosto de cores quentes e curiosamente são as que eu associo ao Alentejo. Não sei se o que faço seria igual caso tivesse nascido noutro lugar” confessa adiantando que é sobretudo a Natureza que a inspira.
Marieta carrega consigo a marca da originalidade que o próprio nome anuncia “até parece que os meus pais já tinham a visão de que eu me dedicaria à arte. Na verdade, não faço ideia de onde foram buscar o nome, mas o certo é que na escola nem precisavam de mencionar o apelido porque Marieta era só uma: eu.” Conta divertida.
Tinha 7 anos quando veio para Lisboa, mas foi na Amadora que fez o ensino primário e o liceu onde frequentou a área da economia. Finalmente o apelo da arte impôs-se mais forte e sem o conhecimento dos pais toma uma decisão “aos 19 anos inscrevi-me na António Arroio porque o meu interesse era na área do visual e da execução manual” uma opção que seria depois comunicada aos pais que, apesar de considerarem a economia um caminho mais seguro, dariam o seu total apoio porque sabiam bem da paixão da filha pela arte.
Na escola António Arroio, Marieta inscreveu-se no Curso de Artes dos Tecidos onde teve como professora Gisela Santi que viria a ter um papel central no seu percurso “fiquei ligada ao ateliê da Gisela na Infante Santo e cedo comecei a fazer tapeçaria com ela, no ateliê e em casa dela. Por isso, quando fui para Belas Artes já trabalhava na área nomeadamente com o grupo de pessoas que estava ligado à Gisela, o grupo 3.4.5 – Associação de Tapeçaria Contemporânea. O “3.4.5” era o número da porta dela” recorda.
Conversar com a Marieta é escutar uma mulher que serenamente nos conta a sua história, mas que se transforma quando fala do que a apaixonou nesta área especifica de expressão artística. A sua voz ganha outra cor e textura quando explica a osmose entre as mãos e a obra que acontece na tapeçaria, um aspecto que seduz Marieta: “o que me apaixona é este contacto com os materiais, a mistura de materiais diferentes com texturas diferentes, a criação de relevo, o não ser uma pintura estática. A tapeçaria manuseia-se e até na produção das tintas eu intervenho directamente porque sou eu que faço quase sempre as tintagens para as minhas tapeçarias de acordo com o objetivo que pretendo. É um processo demorado que requer tempo e paciência, mas faz parte e funde-se no processo criativo.”
O comportamento dos diferentes materiais à tintagem vai diferindo em conformidade com a fibra e por isso, o resultado cromático acaba por representar uma descoberta que se integra na perfeição no prazer que cada obra realizada oferece “enquanto o algodão tinge a 100% ou seja, adquire a cor exacta, com outros materiais como o sisal e o linho as cores surgem sempre diferentes e é muito interessante e empolgante ver o resultado final”.
Em Belas Artes, entra no Curso de Pintura, mas vai dar continuidade à sua formação em tapeçaria com os professores Rocha de Sousa e Manuela de Sousa. Nesta altura constata com espanto que há desconhecimento sobre alguns materiais com que já trabalhava. A relação que se estabeleceria entre Marieta e os professores de tapeçaria viria a ter um registo mais próximo de partilha entre colegas de ofício e menos do de uma ligação entre aluna e professores “muitas vezes partilhava com os meus professores informações sobre locais onde costumava adquirir materiais. Foi muito interessante e cheguei a fazer um livro sobre tintagens que se encontra no arquivo da biblioteca da escola” lembra.
“O que aprendi em pintura acabou por se encadear com a tapeçaria porque quando pintava em telas eu acabava sempre por criar relevo, misturando papéis, tecidos ou rasgando. A minha tese do último ano em Belas Artes teve como tema o Mar e eu rompia as telas com cordões e o resultado foi uma fusão entre pintura e tapeçaria”
Acaba Belas Artes numa altura em que já conciliava os estudos com o ensino e dá continuidade ao seu trabalho criativo continuando ligada ao ateliê de Gisela Santi.
“Nunca me desliguei da tapeçaria, tinha ateliê em casa e fiquei sempre ligada à Gisela e com ela fiz exposições em conjunto apesar de também ter feito individuais. Quando vivi em Loures chegámos a programar simpósios sobre tapeçaria que se realizaram bienalmente e que tiveram grande adesão principalmente dos artistas ligados ao grupo 3.4.5
Marieta sente uma diferença no interesse que o público tem demonstrado pela tapeçaria ao longo do tempo considerando que nas décadas de 80/90 era mais receptivo do que é na actualidade. O final do século XX foi, de resto, uma época de intensa produção fruto de uma disciplina de trabalho rigorosa. Marieta mostra-nos um amplo conjunto de fotografias das suas obras e confessa-nos “eu vendi muitas tapeçarias…nada do que aqui vê está em meu poder. Quando me despeço de alguma peça fico feliz por perceber que as pessoas gostam do que faço. Apesar de criar afeição às minhas tapeçarias, acabo por conseguir libertar-me e deixá-las ir”
Com um gosto preferencial por trabalhar peças de grandes dimensões Marieta revela o que a entusiasma “a Natureza é muito inspiradora, o mar, as serras, o pôr de sol, as árvores, ou mesmo um animal esventrado como foi o caso de um que vi quando acompanhei alunos numa vista de estudo e foi a fonte de inspiração para uma peça porque também nesse caso é a Natureza que ali está expressa. É ela que me fornece ideias, seja uma árvore, as serras, o mar, um animal… Claro que a observação da Natureza é uma experiência individual e vai variando ao longo do tempo. Hoje as pessoas preferem mais a captação do mundo através da fotografia porque parece ser mais importante garantir o registo de que se esteve em determinado lugar”.
Marieta Miguel reconhece a necessidade de uma maior sensibilização para a observação, uma educação do “ver”. Objectivos que dependem do papel desempenhado pela Escola até porque, como Marieta nos diz, tudo depende de como é que o educador vê o espaço em que se encontra “quando temos a possibilidade de ver as coisas de outra forma também conseguimos transmitir. A forma como abordamos os temas, a paixão com que falamos, a capacidade de deslumbramento e descoberta que possuímos tem impacto naqueles que nos ouvem. Felizmente tive muito sucesso com alguns alunos que enveredaram pela arte.”
Na tapeçaria de Marieta descobrem-se mundos e caminhos insondáveis, volumes e cores que nos transportam aos lugares que, sendo os da Marieta, também são os nossos. Olhamos, descobrimos e regressamos a eles vezes sem conta e sempre em novas revelações. São múltiplas as técnicas e materiais usados como o sisal, algodão (as mechas, depois da fibra ter sido comprada em bruto, são preparadas pela própria artista) cânhamo, seda, cobre (usado para conseguir efeitos específicos que necessitam de suporte), madeira e até vidro. O resultado revela-se numa volumetria onde se descobrem “nós, transparências e múltiplas cores que escoam compassadamente, mas que por vezes quebram esse ritmo pelo choque com outras que lhe são radicalmente opostas” como descreve a filha Ana Isabel num texto a propósito de uma das exposições.
Marieta é a alquimista que transforma o que vê numa dimensão física e multivisual num domínio natural de técnicas e diálogo bem conseguido entre os diversos materiais que usa. A tapeçaria acaba assim por representar um palco de criação artística onde se ensaiam e se revelam diferentes gramáticas criativas “a Gisela comparava a tapeçaria à ópera porque na ópera encontramos um conjunto de expressões artísticas,« como música instrumental, canto, teatro e cenografia e a tapeçaria também envolve um conjunto de técnicas e exige o domínio de todas elas”.
E em cada obra há um processo complexo e demorado que se cumpre por etapas “começo com o cartão, ou seja, um plano, um projeto que depois pode ou não ser ampliado e finalmente é concretizado o que não significa que não seja alterado. Porque na execução e em conformidade com os materiais com os quais temos de estabelecer uma relação e alcançar um diálogo, podemos sempre ir mudando, mas preciso de ter sempre um ponto de partida. Por fim há a montagem que também é uma fase exigente”.
Marieta Miguel tem um longo trajecto marcado por múltiplas exposições individuais e colectivas, está representada em coleções particulares e no estrangeiro. Em Portugal podemos encontrar obras suas no Museu Municipal de Loures, Serviços Municipalizados de Loures, L.T.E.- Eletricidade Lisboa e Vale do Tejo e Câmara Municipal da Vidigueira para onde foi “uma tapeçaria de grandes dimensões com várias sobreposições a simular um cacho. A Câmara comprou por causa do tema”. Um dos seus trabalhos integra a coleção do Dr. Mário Soares tendo sido uma oferta da C.M. Loures aquando da sua visita ao Concelho durante a Presidência Aberta.
Mas a par da sua vertente artística e da sua profissão docente no ensino secundário, Marieta foi também formadora e sócia fundadora da Quadrante – Associação dos Artistas Plásticos de Loures em parceria com o marido Fernando Curado Matos. Enquanto membro da Associação participou em acções junto de escolas primárias que visavam proporcionar às crianças uma primeira abordagem aos têxteis.
Actualmente trabalha numa tapeçaria que Marieta confidencia estar demasiado plana para o seu gosto e “por isso estou a pensar na volta que lhe hei-de dar”.
Com um bom acervo no seu ateliê, Marieta está pronta para integrar Exposições colectivas. Além de já ter decidido qual o próximo tema inspirador para os próximos trabalhos: os paramentos religiosos que serão desconstruídos e reconstruídos pelo seu olhar original, à semelhança do que tem sido a sua poética estética.
Paula Timóteo