Educação I A humilhação dura o ano inteiro…
Parecem corvos ondulantes aos gritos vestidos com o rigor que as capas negras emprestam ao seu visual. São finalistas de um qualquer curso universitário e trazem com eles colheres de pau gigantes, adereços e tintas e baldes e uma excitação mal contida. Na voz e nos gestos percebe-se o empolgamento que antecede as próximas horas e estão preparados para aplicar rituais de humilhação e violência verbal e psicológica em caloiros menorizados e convencidos a acatar cerimónias de iniciação.
Os corvos juntam-se em bandos e arrastam consigo os colegas de 1º ano que temem não pertencer à tribo e por isso seguem os das capas negras de cabeça curvada e olhos obedientes presos ao chão. Estreantes no mundo universitário, esmagados com a complexidade e a frieza que os novos ambientes revelam em contraste com um secundário aconchegante e próximo, os caloiros confiam que as praxes académicas lhes garantem a integração. E ninguém quer ser excluído do lugar onde vai viver grande parte da sua vida nos próximos anos. O segredo para que os alunos mais velhos consigam ter os colegas ajoelhados aos seus pés, com orelhas de burro, mãos amarradas a gritar palavras e frases de submissão, a aceitar serem mergulhados em águas geladas, ou a andar na rua de fralda e chupeta ou a olhar para baixo por não merecerem olhar para o “Sr doutor”, está precisamente em fazê-los acreditar que, dessa forma, alcançarão um verdadeiro sentimento de pertença à comunidade universitária.
A História das praxes perde-se numa cronologia remota que parece já muito longínqua e por isso já podemos falar de uma tradição existente nas universidades em Portugal e noutros países de língua portuguesa. A origem dessas práticas encontra-se em tempos antigos quando os “bixos” (caloiros) passavam por rituais de entrada na vida universitária como forma de provar o seu compromisso. Gradualmente, foi ganhando força a ideia de que a praxe seria a melhor estratégia para criar laços entre os caloiros e os colegas mais velhos, incutindo-lhes um espírito universitário. Actualmente, a concepção das praxes obedece a diferentes entendimentos de acordo com o que cada universidade, faculdade ou curso decide. Haverá quem, na organização das actividades de recepção aos novos colegas, o faça com genuíno desejo de os integrar através de momentos descontraídos entre os finalistas e os caloiros, promovendo o espírito de grupo e o companheirismo. Lamentavelmente também há outra visão e temos assistido ao longo dos últimos anos a uma degradação do conceito inócuo e benévolo da praxe adulterando-a e tornando-a numa triste manifestação de subjugação.
Além das actividades escolhidas se pautarem, geralmente, por um guião de sadomasoquismo assiste-se ao prolongamento incompreensível das praxes ao longo de todo o ano lectivo chegando mesmo a haver alunos que apesar de já frequentarem o 2ºano do curso continuam a ser praxados e humilhados.
O debate público sobre os limites destes rituais surgiu quando em Dezembro de 2013 um grupo de 6 jovens perdeu a vida na praia do Meco persistindo a dúvida sobre o que em concreto terá acontecido. Infelizmente rapidamente a discussão perdeu o interesse e foco mediático, mas é imperioso reanimar a reflexão nomeadamente para perceber como é possível que se continue a assistir a espectáculos degradantes ao longo de todo o ano lectivo. Afinal, o que andarão efectivamente os estudantes a fazer na Universidade?
Sobretudo dever-nos-ia sobressaltar a facilidade com que jovens com formação escolar, na posse das suas faculdades e capacidade de decisão, aceitam ser humilhados. É de facto inquietante a ligeireza com que se revelam carrascos e submissos e esse facto não augura nada de bom no futuro. Gente que encontra no vergar de costas e joelhos no chão, na obediência servil e silêncio imposto, um código de conduta aceitável e até desejável a troco de uma falsa sensação de pertença, são futuros abusadores em potência. Claro que o próprio conceito de pertença tem um vasto caminho para a discussão e clarificação. Pertença a quem, a quê, com que custo e objectivo?
Paula Timóteo