Clube de Atrelagem do Zambujeiro I Tradição e modernidade pela lente de Fernando Curado de Matos
Pouco conhecida pela generalidade dos portugueses, a atrelagem com cavalos é hoje uma prática em crescimento e que vai conquistando cada vez mais um público ávido em testemunhar o renascer de tradições fascinantes. De resto, tudo o que envolva a ligação Homem/cavalo transporta sempre consigo uma forte componente de sedução e mistério.
A História da cumplicidade entre o Homem e o cavalo é já antiga. Terá sido há mais de 5000 anos que a domesticação de cavalos se iniciou e, de acordo com os dados existentes, foi na região do atual Cazaquistão que os povos agropastoris começaram a usar o cavalo como animal de carga passando mais tarde também a montar o que viria a ter ampla aplicação quer em contexto lúdico quer em cenário de guerra.
Quanto à atrelagem propriamente dita, trata-se de uma prática que consiste em ligar animais a um veículo e desempenhou um papel essencial no desenvolvimento das comunidades. A sua aplicação, por volta do ano de 2500 aC. , iniciou-se com o uso de bois na agricultura e cerca de 500 anos mais tarde os cavalos começaram também a ser usados na atrelagem o que produziu um impacto decisivo na História da Humanidade já que a sua velocidade e resistência permitiram ao Homem vencer rapidamente distâncias longas. De igual forma o uso do cavalo em contextos militares foi determinante na construção de impérios e definição de fronteiras com persas, assírios, gregos e romanos a incorporarem o uso de cavalos nas suas forças militares dando origem às cavalarias. E todos se recordarão das reconstituições históricas cinematográficas que nos transportam até à antiga Roma imperial e nos mostram as tão apreciadas corridas de quadrigas nos Circus Maximus. Curiosamente, ter-se-á destacado um condutor lusitano nascido em Lamego, Caio Apuleio Diocles, conhecido por “Lamecus”, dada a sua origem, que terá sido o condutor mais bem pago na época ultrapassando largamente a fortuna dos mais bem pagos atletas da actualidade.
Com o surgimento dos motores a combustão, a atrelagem perdeu protagonismo como meio de transporte, libertou-se da amarra utilitária e passou a ser encarada como uma manifestação de engenho e arte numa simbiose de habilidade, treinamento e coordenação entre o cavalo e o condutor. Testemunha de uma parceria milenar, a atrelagem depende não apenas da maestria do condutor, mas de uma conexão entre Homem e cavalo pouco traduzível em palavras apesar de haver belas excepções como Clarice Lispector se refere a um cavalo “Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é”.
Nos olhos do cavalo o Homem encontra um mundo secreto de inteligência, amor e força difíceis de rivalizar e há sem dúvida um diálogo silencioso pleno de paixão e respeito mútuo que atravessa o Tempo e vai além dele. Quando a combinação inclui a elegância e beleza de um carro, a destreza e o vínculo entre o Homem e o equino ganha outra dimensão.
Apesar de não ser habitual ver a modalidade da atrelagem em reportagens, esta é uma tradição ancestral que se tem mantido viva assumindo um conceito renovado e adaptado à modernidade. Prova deste facto são os êxitos que Portugal tem conseguido na competição contando com diversos títulos conquistados e até mesmo organizações mundiais, como o Campeonato do Mundo de Atrelagem de 1 cavalo, que se realizou na Companhia das Lezírias em 2012.
A verdade é que desde os finais do Século XX, quando um grupo de amigos começou a organizar as primeiras provas com cavalos atrelados nos moldes europeus, que o interesse não cessou de crescer. E não tardaram as competições, como a primeira maratona na Equipagem de S. Huberto em Santo Estêvão, bem como a necessidade de se construírem carruagens mais resistentes e confortáveis destinadas às provas de campo. Após o lançamento do primeiro modelo de carruagem de Maratona seguiram-se as réplicas das carruagens de cidade, bem como os spiders, os phaetons, as charrettes, os tilburys.
Com a chegada do século XXI, a evolução da modalidade segue o seu curso com a realização das provas rápidas, denominadas hoje por Combinados Maratona que se disputam numa tarde, e ainda os passeios de lazer no campo sem faltarem os concursos de Tradição.
A manutenção desta cultura que se vai abrindo à modernidade incorporando novas formas de utilização do cavalo atrelado, sustenta-se na paixão de praticantes como os que estiveram na génese do Clube de Atrelagem do Zambujeiro recentemente formado e que conta com uma centena de sócios ligados à modalidade. Dar visibilidade à Atrelagem e fomentar o aumento do número de participantes são os seus objectivos fundadores. Motivado em elevar a modalidade a patamares de maior reconhecimento e mobilização o Clube de Atrelagem do Zambujeiro está fortemente empenhado em incentivar novas gerações e promover a recuperação de viaturas hipomóveis. E porque a Atrelagem abrange competição, tradição e lazer, o clube pretende representar “um espaço para troca de informações, de organização e realização de encontros e eventos, e, sobretudo, uma base de fomento e apoio do convívio à volta desta modalidade.” Como se pode ler no prefácio do recente livro de fotografia equestre dedicado ao clube da autoria de Fernando Curado de Matos com texto de Filipa Guerreiro Apolinário, que será lançado no próximo dia 21 de Dezembro nas instalações do clube .
A fotografia equestre exige um olhar cuidadoso, atento ao pormenor, de aguda sensibilidade e de rápida leitura da poética que se pretende captar e esta é uma obra onde a imagem impera pela lente exímia de Fernando Curado de Matos. Mergulharmos no mundo extraordinário da atrelagem é uma descoberta para quem não conhece e uma experiência exaltante para quem nele vive. Para este livro, que retrata quase um ano de vida do clube, foram ainda convidados a participar com fotografias da sua autoria, Cristina Nobre e José Luís Teixeira.
Definitivamente, a atrelagem vai além dos estreitos horizontes que a veem apenas como um carro puxado por um ou mais cavalos e é essa a viagem que este livro nos oferece permitindo-nos conhecer o admirável mundo do Clube de Atrelagem do Zambujeiro e o seu primeiro ano de intensa actividade.
Mas falar da modalidade sem mencionar todo um universo de artesãos que nos bastidores asseguram a continuidade da tradição, seria uma falha gravíssima. Os mestres que constroem e trabalham nos carros de atrelagem garantindo a sua manutenção e/ou restauro para que possam ter longa vida, encontram-se divididos, de forma geral, em dois grupos: o grupo ligado à confecção e reparação de arreios, e equipamentos para os animais, incluindo as ferraduras e sua colocação, e os que se dedicam à construção e reparação dos veículos.
O livro de Fernando Curado Matos também é revelador do trabalho extraordinário dos artesãos alertando-nos, em simultâneo, para o risco do desaparecimento dos seus saberes.
Paula Timóteo