Eugénio de Andrade I O poeta solar
Dedicou a vida à palavra e fez dela a musa de poemas luminosos e intensos. “Poeta da intensidade“, como lhe chamou Vergílio Ferreira, ou “o grande poeta do amor da poesia portuguesa do século XX“, segundo António José Saraiva, Eugénio de Andrade lê como ninguém a alma humana e a sua poesia é tecida com a transparência de uma aparente simplicidade, plena de musicalidade. Recupera-nos a memória das palavras e dores do que foi e já não é. Nos seus poemas encontramos uma certa tristeza e melancolia que nos atrai irremediavelmente. E é impossível esquecer o sorriso de Eugénio de Andrade, a sua voz cálida e branda, mas também o seu olhar duro quando se sentia incomodado.
Eugénio de Andrade não morreu porque os poetas, os grandes, nunca morrem.
Eugénio de Andrade o poeta que gostava de gatos, e muitos foram os que marcaram presença junto à Cooperativa Árvore quando o corpo do poeta ali foi velado, era um homem solitário que adorava a mãe, talvez a pessoa que marcou de forma mais intensa e indelevelmente a sua obra e o seu Poema à Mãe é sem dúvida dos mais belos da História da poética portuguesa. Um poema que revisitamos tantas vezes reconhecendo nele a nossa própria voz.
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade, in “Os Amantes Sem Dinheiro”
O ano de 1923 tinha chegado há pouco quando, na Póvoa de Atalaia, Fundão, nasce Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas, fruto de um amor juvenil. A mãe, Maria dos Anjos, era filha de trabalhadores modestos e o pai, era oriundo de uma família proprietária e abastada, partirá para Lisboa sem perfilhar o bebé. Mais tarde, quando desejou fazê-lo, o filho recusaria. O crescimento do jovem José Fontinhas far-se-á assim num contexto familiar marcado pela ausência de um pai a quem o poeta se refere como um “o senhorito do Monte da Ribeira da Orca”. A presença da mãe será o aconchego de que se alimentará a alma do poeta e com ela viverá uma ligação profunda e umbilical prematuramente quebrada (Maria dos Anjos morrerá com 55 anos). Começou a sua aventura pela tessitura das palavras aos 13 anos e dois anos depois, em 1938, enviou a António Botto alguns poemas que impressionaram o poeta. Logo no ano seguinte publica o seu primeiro poema “Narciso” e em 1940 assina pela primeira vez com o nome de Eugénio de Andrade.
“As mãos e os frutos”, surge em 1948 e é amplamente bem recebida pelos críticos. É o terceiro livro de Eugénio de Andrade, mas foi considerado pelo próprio poeta e durante muito tempo, o primeiro. Jorge de Sena diria dele que havia sido “Escrito por um homem na força da juventude, mas no momento raro em que a adolescência não murchou de amarga, nem a maturidade já se fez triste”
Só as tuas mãos trazem os frutos.
Só elas despem a mágoa
destes olhos, e dos choupos,
carregados de sombra e rasos de água.
Só elas são
estrelas penduradas nos meus dedos.
– Ó mãos da minha alma,
flores abertas aos meus segredos.
E, como bem observa Ana Cristina Oliveira na sua tese de mestrado, “É já patente, aqui, no poema inicial do livro, a presença da dicotomia “luz/sombra” característica da obra de Eugénio de Andrade
O tempo é sem dúvida vertiginoso e estamos prestes a cumprir 20 anos de ausência física de Eugénio de Andrade. Estávamos a entrar no Verão e no cimo da urna fechada, o seu último poema escrito por si em 2002 (posteriormente passaria a ditar), no Hospital de Santo António era o adeus poético de Eugénio, o seu olhar luminoso a fechar-se sobre nós:
As Maçãs
Também ele vai morrer, o verão.
Do verde ao vermelho
As maçãs ardem sobre a mesa.
Ardem de uma luz sua, mais madura.
E servem-me de espelho
Um poema que não será incluído em nenhuma antologia porque, conforme deixou determinado a Arnaldo Saraiva, presidente da Fundação Eugénio de Andrade, “A minha poesia é a que publiquei em livro.”
Era Junho e só nos surge a ideia de que Eugénio partiu com as aves naquele que seria para ele o momento perfeito para se despedir embora a morte sempre o tivesse atormentado “tenho uma enorme cobardia perante a morte. Não quero pensar nisso” confidenciaria num documentário para a RTP em 1993.
A poesia eugeniana era, como Óscar Lopes disse um dia, uma espécie de música. O próprio poeta explicava “Em mim, o ataque do poema é de ordem musical. Uma palavra é como uma nota que procura outra para um acorde perfeito”. Uma musicalidade que se comprova de forma mais concreta quando ouvimos a sua obra em vozes como a Simone Oliveira, Fausto, José Mário Branco, os Trovante e, num outro registo musical, surge em 1960, pela voz do tenor Fernando Serafim e com música de Fernando Lopes Graça (ao piano), o disco As Mãos e os Frutos, que viria a ser reeditado, embora com capa diferente, em 1975.
A obra de Eugénio de Andrade reflecte a doçura que nele habitava, mas nele também coexistia uma faceta mais ríspida como o jornalista e escritor Viale Moutinho dizia e que o poeta confirmava. Era um homem “com uma alma onde conseguia coexistir tanto a brutalidade como o afecto”. Essa brutalidade nada mais era que a reação impaciente ao que Eugénio considerava mediocridade. Eugénio não suportava o pensamento exíguo, a atitude vulgar e não fingia nenhum tipo de condescendência. Aquando da sua participação num documentário sobre si em 1992, a dada altura não disfarça o incómodo quando o jornalista o confronta com a questão da durabilidade da sua obra. Eugénio responde com acidez no olhar e na voz, agastado com um assunto que não o interessava “não escrevo com os olhos postos nisso a que chamam “amanhã”. Eu não tenho preocupações dessa natureza. Não ando com isso às costas”. O que verdadeiramente preocupava o poeta era precisamente o tempo presente e a falta dele para tanto que tinha a fazer “O tempo para mim é sempre pouco” porque cada poema só estava pronto depois de ter sido trabalhado até à exaustão, “no sentido de tudo parecer feito sem esforço, com total desprezo pelo luxo, a ornamentação, o exibicionismo, o espírito de feira”.
Ao longo da vida, o poeta irá decantar os poemas despojando-os de tudo o que fosse excesso “A minha poesia, toda a minha escrita vai no sentido do abandono de certos sortilégios que ela tinha embora mantendo o aéreo e o desenho Matissiano que a caracteriza na sua natureza” (1992).
A liberdade luminosa que respira na sua poesia seria o elemento fundamental que o tornou num poeta preferido dos presos políticos porque, como Óscar Lopes explicaria, “sombra era o que não lhes faltava, dentro deles e na prisão. Na sombra das celas, na clandestinidade ou na selva dos combates a obra de Eugénio esteve presente como um aliado, um alento e sopro de vida no inferno em vida em que muitos viveram”. Manuel Alegre chegou a dizer-lhe: “Os seus livros andaram comigo — na guerra, na cadeia, na clandestinidade, no exílio. Há uns cujas capas têm manchas, talvez de terra, talvez de sangue”
A obra de Eugénio de Andrade não se insere em nenhum movimento literário porque ele era um homem absolutamente livre, sem amarras intelectuais. Apesar de ser contemporâneo dos movimentos neorrealista e surrealista, não é deles que vai beber a influência. Dirá em 1992 “Há 3 vertentes na minha poesia. A poesia medieval portuguesa, nomeadamente os cantares de amigo onde encontramos sempre uma certa leveza, a poesia clássica grega (todo esse mundo antigo continua a pesar na minha cultura) e a poesia oriental”.
Exemplo da influência das cantigas de amigo em osmose com a simplicidade rural portuguesa é o seu poema “Canção”:
Tinha um cravo na mão;
veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?
Sentada bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?
Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
– mãe, dou-lho ou não?
O facto de Eugénio de Andrade não se enquadrar num movimento ligado ao protesto e afirmação política como era, em grande parte, o neorrealismo, e de nunca ter pertencido a nenhuma organização política nem participado de forma mais aguerrida em nenhum movimento não o impediu de apoiar as candidaturas de Norton de Matos e Humberto Delgado. Como ele disse numa ocasião, “nunca fui um homem metido nas coisas da política” o que não significou, em momento algum, uma desatenção pela realidade onde se inseria e a sua poesia reflecte bem esse aspecto. “Há poemas meus que reflectem exactamente esse interesse pelas questões sociais”.
Mesmo no pós 25 de Abril, manteria distanciamento com a vida partidária explicando a sua posição no seu livro “À Sombra da Memória” (1993): “Não me inscrevi em nenhum partido porque, tal como Flaubert pensava, se algum partido eu tinha era o da indignação, e esse não se constituíra ainda, nem chegaria a constituir-se”.
Para Eugénio, o seu compromisso era com uma ética cívica que não conhecia fronteiras nem tempo e muito menos se confinava numa linha partidária.
Lembremos o poema “Sobre o Tejo”, um manifesto antibelicista com uma clara referência à Guerra Colonial Portuguesa
Que soldado tão triste esta chuva
sobre as sílabas escuras do Outono
sobre o Tejo as últimas barcas
sobre as barcas uma luz de desterro.
Já foi lugar de amor o Tejo a boca
as mãos foram já fogo de abelhas
não eram o corpo então dura e amarga
pedra do frio.
Sobre o Tejo cai a luz das fardas
É tempo de dizer adeus
Era conhecida a faceta mais solitária de Eugénio que não alimentava uma vida mundana como tantas vezes nós associamos às rotinas de artistas. Sobre o seu afastamento dessa faceta social o poeta dá como explicação a morte de amigos queridos, o afastamento de outros e o tempo que necessita ter para trabalhar “Trabalho durante a noite, ou ao fim da tarde. Reescrevo os textos obsessivamente. (…) No dia seguinte releio o que escrevi. O que me parece conseguido surge-me agora débil. Aproveito uma linha, duas, recomeço. Às vezes o poema é feito em minutos; outras, demora dias e dias. Não sei se alguma vez me aconteceu contentar-me com um poema escrito sem emendas. Creio que não. Creio que emendei sempre, e continuo a emendar, a rasgar, a deitar fora, numa gaguez que é uma vergonha.”
Eugénio de Andrade foi um leitor insaciável, um amante das palavras e um artesão da beleza escrita conseguindo parecer simples o que era resultado de um trabalho complexo e exigente.
Batista Bastos diria dele que era um “poeta do amor como território colectivo: da amizade, do companheirismo, da solidariedade. Todos os poemas de amor são uma reflexão sobre o acto social. Trata-se de uma representação pessoal do amor”.
Que poema melhor do que “Urgentemente” para nos elevar à genuína condição humana de salvadores do amor?
Urgentemente
É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Talvez dos mais belos apelos alguma vez feitos à humanidade começando com um título que é um grito, um protesto, uma exigência. Vergílio Alberto Vieira salientou o universalismo da poesia eugeniana já que o poeta na sua obra defende tanto a Natureza como o direito à cultura, a dignificação do corpo, ao mesmo tempo que combate a desigualdade social, o colonialismo, a guerra e tudo aquilo que para o poeta “(pusesse) em causa os valores culturais e civilizacionais do homem”.
Óscar Lopes salientava, no documentário de 1992, as 150 edições em português e as cerca de 50 traduções como facto revelador de que não havia “contradição entre qualidade e comunicabilidade” sublinhando que só os grandes autores tinham esta capacidade de chegar facilmente ao leitor não deixando transparecer a grande complexidade que se havia operado na construção do poema.
Esta parcimónia na escrita, dimensão dos poemas e nível vocabular (poucas palavras e uma atenção desmedida à prosódia), dá bem conta de um labor oficinal por parte de Eugénio.
Terminamos com as palavras de Eduardo Lourenço que sintetizou, como poucos, o que sentimos quando lemos ou ouvimos a poesia de Eugénio de Andrade. Dizia o professor e filósofo que as palavras de Eugénio de Andrade “sabem a terra, a água, aos frutos de fogo do verão, aos barcos de vento; palavras lisas como seixos, rugosas como o pão de centeio. Palavras que cheiram a feno e a poeira, a barro e a limão, a resina e a sol”.
Paula Timóteo