Educação I A importância da Mielina

Em 2009 Daniel Coyle, jornalista no New York Times, lançou um livro que deve ser lido e tem tido um amplo e justificado sucesso. Através do seu “Código do Talento” somos levados a acompanhar a viagem que Daniel Coyle fez pelo mundo em busca da resposta possível a uma pergunta que, só na aparência, nos surge simples: Como nasce o talento? 

Quantas vezes já respondemos a esta dúvida com uma ideia que apazigua a consciência impedindo-nos de nos sentirmos frustrados? Normalmente dizemos que o talento é inato e já nasce com a pessoa, dizemos isto com um encolher de ombros mental autolibertando-nos de responsabilidades. E se não for exatamente ou totalmente assim?E, já agora, por que razão há tantos casos de genialidade nos contextos menos prováveis? Os “viveiros de talento”, como Coyle lhes chama, acabam por ser o gatilho que despoleta a investigação porque em áreas tão distintas como o desporto, a literatura, a música ou a matemática, surgem casos que contrariam a tese das condições ambientais mais favoráveis ou qualquer condição inata porque seria uma estranha coincidência que,retirando um exemplo do livro, um humilde clube de ténis originasse mais jogadoras de elite que todo um país.

Numa linguagem acessível e ilustrado por inúmeros exemplos, Coyle ajuda a confirmar o que na verdade muitos professores repetem à exaustão junto dos seus alunos embora que, lamentavelmente, alcancem poucas vezes os resultados desejados. O talento ou a aptidão manual e/ou intelectual resulta de um treino/estudo intensivo e correcto ou seja, não basta treinar/estudar de forma consistente e disciplinada, mas sim treinar/estudar…bem, caso contrário só estaremos a reforçar o erro. E se queremos estudar bem, é condição essencial conseguirmos um elevado nível de concentração porque só assimconseguiremos reconhecer o erro e compreendê-lo. O treino/estudo só tem resultados se for produtivo e ele só o será se for executado por inteiro o que envolve muito mais do que a mera execução instrumental de uma peça de uma forma autómata como se andássemos num tapete rolante, ou a leitura de um texto ou execução de um exercício de forma quase robótica. O estudo tem de envolver uma componente intelectual e não pode estar comprometido a um mero cumprimento acrítico de instruções. 

Na introdução do livro, somos convidados a conhecer uma jovem estudante de clarinete de nível mediano/medíocre que, numa sessão de estudo individual, a dada altura, na execução de uma peça, conseguiu em apenas 5, 54 minutos de estudo autónomo acelerara sua velocidade de aprendizagem dez vezes. No vídeo observado, no âmbito do estudo que estava a decorrer, foi possível aos investigadores na área da psicologia musical reconhecer que a jovem havia adoptado uma estratégia de estudo em que não ignoravaos erros, mas antes aprendia com eles, parando, reflectindo, repetindo, corrigindo, parando de novo e de novo reflectindo sobre os erros cometidos. Estes quase 6’ de verdadeiro estudo levaria o seu professor, depois de observado o vídeo, a enaltecer este momento de trabalho individual afirmando “isto é incrível (…) Esta é a forma como um músico profissional treinaria numa 4ª feira para um espectáculo no sábado” infelizmente a aluna depois deste momento sublime regressa ao padrão de estudo em que não pensa e por isso não aprende nem constrói. 

No fundo o que nos é demonstrado por esta investigação é que a prática adequada (seja treino físico ou estudo), consciente de todos os erros e mobilizando essa consciênciacom vista à evolução é, em convergência com uma forte dose de motivação e orientação, o que leva à genialidade. E esta conclusão é sustentada cientificamente porque se comprovou que o treino intensivo desencadeia o crescimento da mielina, a chamada autoestrada do conhecimento. Trata-se de uma microscópica fibra nervosa que acrescenta velocidade e precisão aos nossos movimentos e pensamentos já que reveste parte dos nossos neurónios. Quanto mais mielina mais veloz se tornam os impulsos que viajam pelo sistema nervoso melhorando a nossa capacidade e habilidade.

Não existe, portanto, nenhum segredo extraordinário nem magia selectiva para a destreza singular, ou capacidade notável e invulgar. Tirando casos muito especiais e características fisiológicas que nos proporcionam melhores condimentos estruturantes para certas áreas do conhecimento, o certo é que não há nada como “trabalhar com cabeça”, como os nossos avós já nos recomendavam, para se alcançarem patamares elevados de competência. Trabalhar sim, mas consciente do que se está a fazer, atento aos erros, compreendendo-os, seguindo orientações dos que sabem mais do que nós. Claro que nada disto funcionará com o sucesso que desejamos se não houver uma predisposição e um prévio compromisso com o empenho e trabalho disciplinado.

Por isso, quando na escola e na família as condutas educativas se pautam por um padrão que procura “defender ou poupar” o aluno de situações de insucesso, de momentos de frustração e de confronto com o erro mascarando-o com manobras fofinhas e plenas de semânticas cuidadosas para não causar qualquer mal-estar, não se estão a propiciar vivências de crescimento intelectual, robustecimento emocional nem a produzir ou desenvolver talentos. 

A escola não está a cumprir o seu papel, bem sabemos e já o temos dito. Infelizmenteestá a tornar-se uma realidade verdadeiramente preocupante e dramática. E as famílias também estão a perder o rumo. Quando se presenciam crianças às mesas de restaurantes de telemóvel na mão antes, durante e depois das refeições, quando vemos crianças nos supermercados de olhos pregados num écran de telemóvel e dedos num frenesim competitivo seguindo como sombras a mãe ou o pai enquanto estes enchem o carrinho de guloseimas, quando nas escolas se recebem pais em brados porque o professor não fez acomodações curriculares e o seu menino não entende as perguntas dos testes, algo de muito errado está a acontecer e talvez devesse ser considerado motivo de pânico quando os meninos chegam aos 2º ciclo por alfabetizar e outros, supostamente alfabetizados, que não sendo possível descodificar o que escrevem resolve-se a situação com o carimbo de disortografia e passam a ser avaliados em testes Totoloto.

No Código do Talento, também é abordada a importância dos “gatilhos primários” que não têm receita possível e que tanto podem surgir de uma figura inspiradora, uma necessidade de fuga a um ambiente hostil, ou um episódio ou experiência gratificante. Os gatilhos motivacionais são tão importantes que podem também funcionar em sinal contrário ao desejável e por isso importa rodear a criança/jovem de ambientes e vivências culturalmente ricas e benéficas. Regular os tempos e a exposição a estímulos disruptivos como o podem ser, em grande medida, os proporcionados pelas redes sociais, é absolutamente primordial 

Por vezes confunde-se o respeito que a individualidade que cada criança nos deve inspirar com o considerarmos que a ela devemos atribuir autonomia de escolha em questões que de facto devem ser os adultos a decidir.  

Paula Timóteo

Paula Timóteo

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