A imortalidade é um desejo transversal ao longo da História de uma Humanidade que teme e morte e sobretudo lamenta o esquecimento. Numa tentativa de contrariar o apagamento da sua existência, o Homem foi criando objectos, imagens e edifícios, e assim, através da arte, foi conseguindo alcançar registos da sua passagem pelo planeta. E são esses registos que, perdurando no tempo, nos desenham os contornos da História do que fomos para perceber quem somos.
Desde tempos imemoriais que o Homem sente a pulsante necessidade de deixar a sua marca, a sua assinatura, algum átomo da sua existência garantindo uma eternidade que ele próprio não sabe bem qual seja. Crentes ou não crentes de uma vida além da morte, a ideia do desaparecimento absoluto e da volatilidade da memória, incomoda e apela à ação.
Os rudimentares artefactos de épocas pré-históricas marcam o início de uma longa caminhada humana neste planeta que milhares de anos depois passou a estar fixada em documentos escritos e obras de arte. A forma como hoje olhamos o passado deve muito à arte que traduziu em imagens o quotidiano de épocas e sociedades. A escultura e a pintura exerceram, sobretudo até ao século XIX, um papel fundamental na perpetuação de rostos, eventos e momentos que só aparentemente se apresentavam como triviais porque carregavam sempre uma carga simbólica. E todos os registos que atestam a presença humana têm ajudado os historiadores a tecer com cores mais genuínas o manto fascinante e misterioso da História.
Ao longo dos séculos, os artistas, contratados pelas grandes famílias e amparados por mecenas, tiveram uma missão definida: reproduzir, com técnica irrepreensível, a realidade. Nem sempre a realidade era espelhada com rigor. Através de um trabalho de encenação integrando elementos e gestos com forte carga alegórica, descrevia-se a vida como se pretendia que fosse mostrada. Essas imagens são um contributo valioso para entender épocas e até as encenações e algum mistério que lhes estejam associados, conseguem desvendar mais do que o olhar superficial imagina.
Durante o Renascimento, os artistas recorreram frequentemente à câmara escura, considerada o antepassado da câmara fotográfica. Embora o princípio deste dispositivo ótico tenha sido reconhecido por Aristóteles, foi Mozi, um filósofo chinês do século V a.C., o primeiro a concebê-lo. A câmara escura consistia numa caixa fechada com uma pequena abertura num dos lados, que permitia a entrada da luz proveniente de uma fonte externa. Essa luz projetava, no interior escuro, uma imagem invertida da cena situada no exterior, do lado oposto à abertura. Este recurso era especialmente útil no desenho, pois facilitava a reprodução rigorosa da realidade, ajudando a garantir uma perspetiva correcta. No século XVIII, o uso de lentes e de um espelho colocado num ângulo de 45 graus, permitiu a construção de câmaras escuras portáteis de tamanho menor.

Câmara escura (1823) que pertenceu a William Henry Fox Talbot (1800–1877) National Media Museum, Bradford, Reino Unido
A câmara escura representa assim um dos princípios básicos da fotografia a que se somou mais tarde a utilização de materiais fotossensíveis. E é assim que, no início do século XIX, o francês Joseph Nicéphore Niépce criou o processo de heliografia que permitia fixar imagens numa placa de estanho graças à utilização de uma resina conhecida pelo nome de betume de judeu.
Finalmente, em 1826, Niépce conseguia realizar aquela que é considerada a primeira fotografia: View from the Window at Le Gras mostra-nos a vista da janela da sua propriedade em Saint-Loup-de-Varennes, na França, e teve cerca de 8 horas de exposição.

View from the Window at Le Gras
Três anos depois, Niépce assina um acordo de parceria com o seu conterrâneo Louis Daguerre, cenógrafo, pintor e também físico, que, à semelhança de Niépce, se dedicava à investigação do processo fotográfico. O objetivo comum era aperfeiçoar o método e os materiais utilizados, reduzindo significativamente o tempo de exposição. Trabalhando em conjunto e com a introdução de um novo agente químico, o iodo, Niépce e Daguerre conseguiram aumentar substancialmente a durabilidade da imagem fotográfica.
Em 1838, Daguerre regista em Paris, na movimentada rua parisiense Boulevard du Temple, a primeira fotografia de uma pessoa tendo provocado reações de assombro e curiosidade tanto no meio científico como artístico. No ano seguinte inventa o daguerreótipo, a primeira técnica fotográfica comercialmente viável, capaz de produzir imagens em chapas de cobre banhadas com prata e expostas à luz. Curiosamente, esse ano veria nascer Carlos Relvas, o 1º grande fotógrafo português, um homem de rara inteligência e curiosidade insaciável que fez bom uso da fortuna da família. O seu estúdio de fotografia, felizmente recuperado da ruína há poucos anos, é um ex-libris da Golegã e, do ponto de vista arquitectónico, um caso de estudo porque foi idealizado desde o projecto em papel para ser o que sempre foi, um lugar onde se fotografava e se revelavam fotografias com recurso às mais recentes novidades da altura.

Estúdio de fotografia de José Relvas
Nos dois anos seguintes, a fotografia deu passos decisivos através do trabalho de estudiosos como Fox Talbot (inventor do calótipo) ou Hércules Florence cujos estudos e descobertas tiveram lugar na mesma altura que os de Daguerre e Niépce. Talbot criou um processo em que pela primeira vez se usaram imagens em negativo tornando possível a reprodução das fotografias o que representou uma enorme vantagem em relação ao processo de daguerreotipia. Quanto a Hércules Florence, que muito jovem se fixou no Brasil onde viveu até ao fim da sua vida, contribuiu, através das suas pesquisas e experiências, para a evolução da fotografia nomeadamente expandindo as suas áreas de actuação.
Ao longo do século XIX, as técnicas quer do daguerreótipo que continuava a ser preferido em determinadas fotografias porque garantia uma maior nitidez de imagem, quer do calótipo, foram evoluindo permitindo imagens cada vez mais nítidas e processos mais rápidos. Ao mesmo tempo, a Europa modernizava-se embalada pelos ventos da industrialização e das redes de comunicação e a fotografia foi se tornando acessível a uma classe média em crescimento e com uma gradual melhoria nas condições económicas.
Ainda ao longo do século, iríamos assistir a outro fenómeno; o da apropriação da fotografia como expressão artística. Oscar Rejlander e Henry Peach Robinson, por exemplo, trabalharam a fotomontagem que desafiava a percepção da fotografia como um simples registo da realidade. Enquanto a fotografia fazia o seu trajecto como expressão artística, na ciência a fotografia começou igualmente a ter um impacto significativo. Cientistas como Eadweard Muybridge e Étienne-Jules Marey utilizaram a fotografia para estudar o movimento, resultando em sequências fotográficas que mais tarde influenciariam o desenvolvimento do cinema.
No início do século XX, com a invenção de câmaras mais baratas e portáteis, como a Kodak Brownie em 1900, ou a Polaroid em 1947, a fotografia democratizou-se passando a estar acessível a um público bem mais alargado. O slogan “Aperte o botão que nós fazemos o resto” marcaria o início da Era da fotografia amadora.
Rapidamente a fotografia foi alargando o seu campo de actuação e, para além de retratar individualidades conhecidas ou simples anónimos, respondendo ao tal apelo de perpetuação da memória, passaria a assumir um papel determinante na divulgação da realidade social. Em momentos conjunturais dramáticos como a Grande Depressão de 1929, nos Estados Unidos da América, fotógrafos como Dorothea Lange usaram a fotografia para documentar a vida das classes trabalhadoras e famílias pobres, humanizando as questões sociais e gerando empatia pública.

Mãe migrante, Dorothea Lange
Mais tarde, fotógrafos de guerra capturariam momentos cruciais de muitos conflitos como aconteceu com a guerra civil de Espanha, a Segunda Guerra Mundial, a guerra da Indochina ou a do Vietname. Entre os fotógrafos de guerra, Robert Capa, um dos fundadores da Magnum, destacou-se e foi considerado o melhor de sempre. Não por ter conseguido ângulos particularmente artísticos, mas por se ter colocado o mais próximo possível dos acontecimentos correndo riscos de vida o que acabaria por lhe ser fatal ao pisar uma mina em 1954, na Guerra da Indochina.
A estes fotógrafos a humanidade deve muito. A eles somos devedores pelos contributos dados, determinantes para as mudanças de percepção social sobre os conflitos sangrentos. Graças a eles, geraram-se reações que moldaram ou ajudaram a moldar decisões políticas porque as guerras só quando as sentimos como realidades próximas são efectivamente entendidas como hediondas e largam o substantivo que as mascara de comuns. Passam a mastigarem-nos a alma e atropelarem-nos os sonhos. A todos os que, afortunadamente, nunca vivenciaram cenários de guerra, os fotógrafos mostram o horror e desvendam as atrocidades. São eles que pelas imagens narram a(s) História(s) que nos perturbam o sossego dos dias e fazem sobressaltar consciências.

Fotografia de Robert Capa que mostra uma menina, em Janeiro de 1939, à espera, em Barcelona, de ser evacuada.
A invenção da fotografia digital, a partir da década de 1990, e a popularização das câmaras digitais introduziram uma nova equação no cenário fotográfico. A facilidade de armazenamento, edição digital e partilha imediata tornaram as imagens ainda mais acessíveis. Para Sebastião Salgado, nome gigante no mundo da fotografia, na fotografia digital haverá sempre qualquer coisa de significativo que se perde porque, de acordo com o fotógrafo, as fotografias que captamos com o telemóvel não são de facto o que podemos chamar de fotografias na medida em que não têm a ver com memória e apenas representam “uma linguagem de comunicação por imagem,” dada a sua perenidade e rapidez de captação e partilha. Dizia ele: “Eu fico com pena dos bebezinhos de hoje que os pais fotografam com isso [smartphones], mandam as imagens para uns e outros, mas a memória não permanece. O dia em que ele perder o telefone que ele mudar o sistema, uma parte das imagens vai desaparecer, isso não interessa mais. Aquela ideia de memória é só a fotografia que traz”.
Quanto ao impacto que IA representa e irá representar, isso é um cenário ainda assustador pelo potencial que exibe ao pensarmos nas possibilidades de alterações e manipulações, mas talvez estejamos na presença de algo que já não será fotografia. Faz sentido recuperarmos, uma vez mais, a voz de Sebastião Salgado que afirmava: “você só fotografa com a sua herança, com tudo que está dentro de você” e, acrescentamos nós, a IA não tem essa herança.
Sebastião Salgado, o fotógrafo humanista que mostrava um respeito absoluto pelo que fotografava, esse “outro” que tanto podia ser uma tartaruga dos Galápagos com 250 anos, o rosto de uma menina ou a parede humana de mineiros na mina de ouro da Serra Pelada, via a fotografia como “uma linguagem poderosa para tentar estabelecer relações melhores entre os homens e a natureza”, como lembra a Academia de Belas Artes da França na sua biografia.

Tartaruga gigante das ilhas Galápagos

Mina de ouro na Serra Pelada

Imagem de uma menina “sem terra” e que integra o livro “Terra”
Aquando da última entrevista concedida à RFI na Normandia, no norte da França, em Março deste ano, ao falar sobre o papel da fotografia, Salgado não hesitou em sublinhar a sua função social e documental afirmando “Cada vez que você aperta no botãozinho da câmara e faz uma imagem, você faz um corte representativo do planeta naquele momento, e você só o faz naquele momento. Fotografia é a memória da sociedade” considerando ao mesmo tempo que a sua opção pelo preto e branco era a melhor forma de traduzir a dignidade irreprimível da humanidade.
Ao longo da sua História, a fotografia tem tido a capacidade quase mágica de preservar momentos que podem ser posteriormente revistos, reinterpretados, discutidos ou apenas desencadear emoções e os fotógrafos autorais conquistaram para a fotografia o reconhecimento de uma forma de arte tão legítima quanto a pintura e escultura.
A História, relativamente recente, da fotografia representou bem mais do que uma inovação tecnológica já que tem tido um impacto no universo das artes e na amplificação de eventos e personalidades além do seu papel na denúncia de realidades que, de outra forma, se manteriam num universo invisível. A possibilidade de reprodução de imagens, a partir da invenção do negativo, desencadeou um fenómeno de disseminação não apenas da realidade “acontecida”, mas de outras expressões artísticas que assim foram levadas e dadas a conhecer a quem, de outra forma, jamais as conheceriam. A fotografia tornou-se assim uma parte fundamental da comunicação global, ajudando no devir histórico e na construção de identidades individuais e coletivas.
No mês em que se celebra o dia mundial da fotografia, terminamos esta viagem pela sua História com as poéticas palavras de Sebastião Salgado, recentemente falecido, que aqui também quisemos homenagear:
“Um fotógrafo é alguém que desenha o mundo com a luz e as sombras”
Paula Timóteo