Augusto Cabrita I O poeta da imagem

A invenção da fotografia, no século XIX, permitiu uma libertação dos artistas plásticos para voos de livre criatividade permitindo uma representação do mundo com novas narrativas. Mas com os fotógrafos autorais, passámos a entender a fotografia quer como meio de expressão artística, fixando imagens com intenções estéticas, quer como veículo de uma militância cívica que tem ajudado a despertar consciências. Temas ligados à defesa do ambiente, a causas sociológicas, à denúncia dos terríveis cenários de guerra, mas também à identidade individual e colectiva ou à própria linguagem fotográfica, conquistaram protagonismo fornecendo matéria de infinitas possibilidades aos fotógrafos.  Por outro lado, a imprensa foi amplamente beneficiada com este recurso que permitiu demonstrar de forma concreta a veracidade dos acontecimentos descritos, aumentando o interesse dos leitores.  

Em Portugal, a primeira fotografia publicada diretamente na imprensa data do final do século XIX, na Revista Ilustrada, numa época em que a fotografia ainda estava “presa” ao seu papel de mera ilustração dos acontecimentos. Gradualmente, e tal como se assistiu à emancipação das artes plásticas, a fotografia foi ganhando um lugar de destaque tomando o pulso às opções temáticas e à forma como os assuntos eram abordados. Esta evolução foi também promovida pelos avanços tecnológicos que tornaram as câmaras, outrora extremamente pesadas, progressivamente mais leves, permitindo uma maior mobilidade ao fotógrafo. A par da redução do peso, surgiram novos atributos técnicos que ampliaram significativamente as possibilidades do olhar fotográfico. Gradualmente os fotojornalistas foram imprimindo uma assinatura pessoal aos seus trabalhos e tal como Baeza refere, citado no artigo de Denise Guimarães-Guedes, publicado na revista Revista internacional de Historia de la Comunicación, a fotografia documental a partir da década de 1950, conquista uma liberdade de expressão que rompe com a visão “neutra” e os fotógrafos passam a adotar valores de subjetividade não se inibindo de partilhar o seu ponto de vista pessoal. Além disso, a compreensão de que as escolhas do fotógrafo quanto ao equipamento, técnica, composição da cena e enquadramento não alteravam o valor testemunhal da realidade foram, nesse aspecto, de fundamental importância para que os fotógrafos documentais explorassem a liberdade de expressão e temática que o estilo lhes possibilita. Como afirma Baeza, a fotografia é “um relevo da realidade e não a realidade em si mesma”.

Pioneiro do fotojornalismo em Portugal, Augusto Cabrita (1923–1993) foi uma figura central da cultura visual portuguesa do século XX e definiu-se a si próprio como “fotógrafo, documentarista, homem do cinema e da televisão”.

Autor de inúmeras curtas-metragens que foi desenvolvendo como operador cinematográfico na RTP, ao longo de quase três décadas de atividade na estação, Cabrita era fascinado pela luz e pela água que bastas vezes fotografou. Antes de se aventurar com imenso sucesso no cinema, a fotografia foi a sua primeira aventura artística, vindo a participar e a ser distinguido em vários salões nacionais e internacionais.

O fotógrafo autodidacta que olhava as gentes, as terras e o mar com um encantamento sereno e uma poética de ambientes e elementos compósitos, viveu apaixonado pelas ruas e espaços abertos, pelo mar e pelas gentes anónimas, pela geometria dos navios e linhas de corpo e pela harmonização dos lugares adoptando técnicas de enquadramento únicos. Cabrita respirou fundo e encheu a alma de vida e paixão pelo encontro com os outros, pessoas ou lugares.

Apesar de se ter destacado como fotógrafo, Augusto Cabrita foi muito mais do que isso, tal como já referimos. Em 1957, colaborou com a RTP na cobertura da visita da rainha Isabel II a Portugal, realizando a primeira transmissão televisiva em directo a partir do exterior e continuou a fazer de tudo um pouco… operador de câmara, diretor de fotografia, realizador e produtor, sem jamais abdicar do que mais gostava de ser – um repórter, um observador arguto dos acontecimentos, um narrador dos momentos, um perpetuador do fugaz. Como fotógrafo documental e director de fotografia, captou mudanças sociais em Portugal entre as décadas de 50 a 80 tendo realizado diversos documentários o que fez dele um dos mais prolíficos realizadores da televisão portuguesa nas décadas de 1960 e 1970. Certamente que muitos se recordarão do programa Vamos Jogar no Totobola, transmitido semanalmente pela RTP e apresentado por Artur Agostinho que teve Augusto Cabrita como responsável pela realização de mais de 300 curtas-metragens. Nesta rubrica televisiva, eram abordados diversos aspectos da vida portuguesa, desde tradições rurais a cenas urbanas e sempre com um olhar perspicaz, original e documental. O documentário «Lisboa», de 1979, integrado na série «Les Grandes Villes du Monde» e em co-realização com Fernando Lopes, consolida-o como um historiador do quotidiano. Mas Cabrita também se notabilizou com as diversas reportagens que fez no Oriente para a RTP nomeadamente em Goa, Damão e Diu, pouco tempo antes da intervenção indiana.

Ainda na Televisão, foi colaborador permanente em programas como «Horizonte», de Baptista Rosa, «Curto Circuito» e «No Tempo em Que Você Nasceu», de Artur Agostinho. Com João de Freitas Branco e Filipe de Sousa fez “Melomania», certamente um dos projectos que mais o satisfez pelo encontro com o mundo da música, uma grande paixão na sua vida e que se encontra presente numa parte significativa da sua obra.

Nascido no Barreiro, aí cresceu, estudou e, no Clube Naval do Barreiro, praticou remo e natação o que talvez tenha sido determinante na paixão de Augusto Cabrita pelo mar e pelos navios. Não será por acaso que a sua primeira fotografia tirada aos 13 anos, com uma Kodak 6 x 11 que o pai lhe comprara numa loja de penhores, foi precisamente a um barco.

Muitos anos mais tarde, numa entrevista dada a Alice Cruz, sua colega na RTP, Cabrita haveria de reconhecer que quando se começou a interessar pela fotografia, percebeu que esta, além de documentar a realidade também representava a fixação de uma memória e que por isso possuía uma grandeza inequívoca precisamente pela recordação que eternizava. Mas, curiosamente, parece que a afinidade com o universo da imagem foi despertado ainda antes desse primeiro registo feito aos 13 anos. Em entrevista apresentada no documentário da série Fotografia Total, Augusto Cabrita fala de um incêndio num animatógrafo, presenciada por ele aos 5 anos de idade, tendo considerado que essa imagem é o que considera a sua primeira fotografia…sem câmara.

Um fotógrafo autoral é alguém capaz de desnudar o aparente, de trazer até aos olhos do mundo a beleza contida num fugaz momento, num rosto anónimo, num episódio singular, num silencioso respirar da Natureza. Por isso, para Cabrita, fotografar devia cumprir um código ético do qual não abdicava e António Homem Cardoso ilustra bem esta faceta numa entrevista concedida a Denise Guimarães-Guedes sobre o fotógrafo “(Cabrita) fotografava a pobreza, mas sem o pobre (…) fotografava o resultado daquilo, a essência daquilo, a razão daquilo, mas nunca tiraria na vida a dignidade humana de um pobrezinho para brilhar num salão de junta de freguesia”. Para Augusto Cabrita, a dignidade humana era um princípio sagrado que tinha de estar plasmado nas imagens, independentemente da condição social do sujeito fotografado.

António Homem Cardoso conta ainda que entre os principais ensinamentos recebidos daquele a quem ele chama de mestre estão a ética e a estética, conceitos que o ajudaram não apenas a compreender, mas a ser sensível à luz, elemento essencial na fotografia.

Augusto Cabrita criou uma linguagem visual própria evidenciando um olhar sensível e esteticamente singular sobre o quotidiano e o património nacional. As suas composições reflectem as influências do construtivismo privilegiando as linhas e formas, fugindo às tendências do fotojornalismo da época em Portugal e no mundo. O resultado é uma obra fotográfica de inspiração poética.

Barreiro, s/data

Para além do vínculo com a fotografia e cinema, Augusto Cabrita, como já referimos, também era um apaixonado por música, com especial preferência pelos ritmos jazzísticos, chagando a acompanhar ao piano diversos artistas em gravações, que depois viria a fotografar no seu estúdio. Todos se recordarão das capas de Amália Rodrigues com fotografias suas. Para além da estreita colaboração e prolongada colaboração com Amália, também Simone de Oliveira, Carlos Paredes, entre outros, contaram com a parceria de Augusto Cabrita.

Na imprensa, trabalhou como fotojornalista para o jornal “O Século” e para as revistas “Eva”, “Flama” e “Século Ilustrado” além de ter colaborado com diversas revistas por todo o mundo. Em 1955 participou na IX Exposição Geral de Artes Plásticas (EGAP), com 8 fotografias e, no ano seguinte, inaugurou o seu estúdio de fotografia, no Barreiro, a sua cidade tantas vezes fotografada e a quem chamava carinhosamente “Manhattan”. Também o Tejo, com o seu caminhar silencioso com as suas gentes e empresas, se tornou inspirador e sedução permanente a que Cabrita não resistia.

Além do seu trabalho na área da comunicação social, Cabrita foi responsável pela fotografia de toda a obra literária de Carlos de Oliveira e como realizador, autor de centenas de curtas-metragens e diretor de fotografia de filmes como «Marçano Precisa-se», de Fernando Lopes (1962), «Moçambique 65», de Manuel Faria de Almeida (1965), mas também de longas-metragens de onde se destaca «Belarmino», de Fernando Lopes (1964) um documentário que retrata a vida do pugilista Belarmino Fragoso, considerado uma obra seminal do cinema nacional e «Catembe», de Manuel Faria de Almeida (1965).

De sorriso simpático e aberto, olhar atento e apaixonado, Augusto Cabrita registou as gentes e o país num mergulho profundo na alma lusa, no que ela revela de único e autêntico surpreendendo-nos com uma perspectiva de fotógrafo que em nada tinha de vulgar. Por vezes, não são os rostos que surgem privilegiados na composição estética da imagem, mas os corpos, a existência humana traduzida num anonimato que o ângulo com que se fotografa permite. São quadros onde a natureza do mar e dos homens se fundem com gestos suspensos, relevos de tensão, construção de um código de linguagem corporal feito de linhas e geometrização de instantes. De acordo com o seu filho, havia para ele uma “simbiose muito grande entre a fotografia e o cinema” e podemos reconhecer esse aspecto na forma como são trabalhadas as linhas nas composições e, principalmente, como utilizava a luz natural  e onde o contraluz, é uma das fortes características de seu trabalho.

Figura incontornável da fotografia portuguesa, Augusto Cabrita colaborou em projectos gráficos de grande relevo, como o livro Portugal, ao lado do conceituado designer Sebastião Rodrigues, tendo sido também responsável pela ilustração fotográfica integral da obra literária de Carlos de Oliveira. A sua assinatura está igualmente presente em títulos memoráveis como Cozinha Tradicional Portuguesa, de Maria de Lourdes Modesto, obra que contou também com a contribuição fotográfica de Homem Cardoso. Participou ainda em coleções que revelam o património nacional, como As Mais Belas Vilas e Aldeias de Portugal, Os Mais Belos Rios de Portugal e Os Mais Belos Castelos e Fortalezas de Portugal, com textos de Júlio Gil.

O “poeta da imagem” foi distinguido ao longo da sua carreira com vários prémios, entre os quais o Prémio Nacional de Cinema (1964), pela fotografia do filme Belarmino, o Prémio Bordalo (1970) na categoria de Televisão, e, em 1985, o título de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, num reconhecimento pelo seu contributo para a cultura visual do país.

Após a sua morte, em 1993, o reconhecimento perdura através do património fotográfico deixado, mas também por ser o patrono da Escola Secundária Augusto Cabrita tendo igualmente sido dado o seu nome ao Auditório Municipal Augusto Cabrita, ambos no Barreiro, a sua terra natal. Num país tantas vezes distraído com os seus maiores talentos, Augusto Cabrita permanece como um símbolo de excelência criativa. Entre luz e sombra e tudo o que registou e realizou, Cabrita conseguiu elevar Portugal a um patamar de distinção, com imagens que falam mais alto do que mil palavras.

Paula Timóteo

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